quarta-feira, 15 de julho de 2015
terça-feira, 14 de outubro de 2014
Um conto: O pedido
O
pedido
A
pálida luz da lua, enaltecida pelo espesso véu negro da noite, tecia seus
braços luminosos tocando agora a superfície de um mundo ainda jovem, e como
tal, completamente tomado pelo delírio de ser, vagando, perdido, por entre as
próprias fantasias.
O
longo e silencioso suspiro das arvores fora quebrado conforme pesadas botas de
couro deformavam o solo logo abaixo de si. Uma respiração ofegante roubava-lhe
a vez da fala, ocupando todo o ar que dançava friamente ao seu redor. A tensão,
denunciada pelas gotas de suor que escorriam lentamente sob a pele, crescia a
cada passo dado em direção ao destino traçado entre as paginas amareladas de um
antigo exemplar, envolto em uma grossa camada de pano, repousado sob o braço. Embora
antigo e maltratado pelo tempo, trazia ainda consigo a beleza que tivera no dia
em que fora escrito. Sua capa ornamentada em um couro batido já desgastada e
sem brilho, não deixava a restar duvidas de que tal objeto fora moldado por
sobre a mais fina matéria, e perdido em um tempo, que transcendente às
lembranças, havia deixado de existir.
Os
braços e pernas feridos pelo trajeto forçado mata adentro, perpetuavam sua
interminável luta, abrindo caminho por entre os galhos secos e pontudos de uma
mata cada vez mais fechada e densa. Os calçados já completamente subjugados
pela lama, sentiam dificuldade de manter-se num curso constante, resultantes à
dor que agora percorriam os membros inferiores. E em meio ao silencio berrante
da noite, a língua ressecada esfolava o céu da boca, repetindo para si mesma
que agora faltava pouco.
Não
demorou muito mais tempo para que avistasse, por entre os troncos negros, o
reflexo proveniente das águas. Finalmente havia chegado ao seu destino. Exausto
e ofegante, aproximou-se do lago, caindo sobre os joelhos e permitindo que a
fria terra úmida se moldasse ao redor dos dedos de sua mão.
Após
recuperar o fôlego, roubado pela árdua caminhada, repousou o velho livro bem a
sua frente. Correu os dedos por paginas finas, porém muito pesadas, buscando
aquela que era única entre tantas outras iguais. Suavemente fechou-se no escuro
de sua mente, e tão solene quanto o gemido das arvores ao seu redor, começou a entoar
uma prece cada vez mais alto.
“ Aquela que habita o coração negro de todos
que são um ; Mãe da sombra e Rainha das trevas; Diante do pobre servo
aparece-te; Do sangue dele ergue tua força; De sua alma eleva teu espirito; Conceda
a este que lhe serve um suspiro de pedido.”
Abriu
os olhos e correu sua visão pelo cenário que o abraçava, tudo permanecia como
antes, nem mesmo a Dama da noite mostrava, em seu percurso habitual, que o
tempo havia se passado. Sentiu-se decepcionado, porém dignou-se a tentar mais
uma vez, afinal havia chegado até ali e alguma parte do todo merecia, por
excelência de causa, ser real. Dessa vez curvou-se a ponto de sentir a terra
fria beijar sua testa, entoando novamente sua prece, erguendo a voz o mais alto
e encorpada quanto fosse possível para alguém entregue ao estado em que se
encontrava. O vento cortava friamente as árvores que gargalhavam com o balançar
de suas folhas. Se riam de prazer ou de histeria, aquela altura o pobre homem
não sabia dizer.
O
eco das palavras finais dissipou-se do ar, fugindo-lhe ao alcance dos ouvidos.
Lentamente, e já sem esperança, levantou o corpo, e assim também sucedeu-se seus olhos. O susto o fez
cambalear pra trás, caindo sobre a lama escura formada pelo abraço gélido entre
a água do lago e a terra que lhe servia de cálice. Ali, caído e paralisado pelo
medo, emitia um forte grito de pavor, audível apenas ao ouvido daquelas que
outrora foram chamadas de almas.
“ Quem és?” Disse uma voz antiga arrastada,
oriunda de um vento esbranquiçado. “ O que queres vindo até aqui?”
Ainda
tremulo, o homem avistou o livro que agora dormia tranquilamente nos braços
daquela que lhe falava.
“ E-eu..” Tentou responder, mas as palavras
pareciam agarra-se a sua garganta como se temessem ser pronunciadas.
Longos
cabelos brancos ondulavam junto à vestes de mesma cor, dissolvidos num caminhar
elegante, dado para fora da água escura.
“ Quem és, e o que queres aqui?” Indagou a
voz num tom mais forte e imponente.
“ Um.. um lenhador, apenas isso...” Conseguiu
dizer, sem olha-la nos olhos, se é que a coisa também os tinham. “ Vim da Velha
cidade.”
“ Hmm. Então ela ainda existe?”, disse a
entidade como se lembrasse de algo há muito esquecido. “ Vocês são como uma
praga que se alimenta do próprio veneno. Tão persistentes quanto inconvenientes...
Porém, não viverão para sempre.”
Continuou
a aproximar-se devagar. Suas vestes se arrastavam sobre a terra escura, muito
embora parecessem tão limpas e claras quanto às tardes ensolaradas de verão.
“ Onde encontrou esse livro?” Questionou de
forma pesada e acusativa. “ Não deveria homem nenhum tê-lo!”
“ En- encontrei-o. Não o roubei, eu lhe
juro... eu juro.” Respondeu, lutando para olha-la diretamente. “ Tentei lê-lo,
mas não o compreendi. Apenas a parte que me trouxe até aqui.”
O
vulto branco, que parecia tremular entre diferentes estados de matéria, ora
solido como rocha, ora intocável como uma miragem, caminhava ao redor do
lenhador ainda jogado no chão. Seus olhos acinzentados contemplavam o vazio,
como se estes se perdessem perante o vislumbre de um mundo invisível para quase
toda a existência.
“ O
que queres de mim?”, perguntou ao parar frente as costas do homem.
Após
um silêncio que permitiu que o longínquo murmúrio do bosque fosse por eles
ouvido, o homem ergueu o rosto a contemplar o céu que cobria-lhes com seu manto
bordado em estrelas.
“ Eu
quero viver para sempre!” Foram as palavras que saltaram graciosamente de seus
lábios.
“
Pois que assim seja.” Disse a antiga figura branca enquanto caminhava em
direção ao lago, ajoelhando-se a sua margem.
“
O.. O livro mencionava um preço...” Disse o homem em voz baixa.
“
Não te preocupes quanto a isso, criança. Não faço de tudo por aquilo que
recebo, quanto mais a quem me veio com tão forte e honesto desejo.” Respondeu
solenemente.
Enquanto
caminhava de volta ao ainda caído lenhador, o reflexo vindouro das águas parou
de sorrir em sua superfície, que agora se mostrava completamente negra e opaca.
O ar tornou-se surdo e pesado, decaindo na escuridão a cada passo dado pela
entidade, que permanecia tão clara e luminosa quanto o dia.
“ A
lua escondeu-se sob nuvens... Tão distante, mas ainda assim tão sábia. Não
achas?” Murmurou ao se abaixar diante do homem que tremia sem saber o que o aguardava.
Aproximou os finos dedos cobertos pela espessa lama do lago em direção ao rosto
assustado.
“
Abra-te os olhos!”
Tão
logo o lenhador descolou as pálpebras tremulas, tudo o que outrora conheceu tornou-se
escuridão e vazio.
*****
Grossos
dedos enrijecidos pelas constantes esfoliações e cascas de feridas, arranhavam
a superfície rugosa de algo que um dia aprendera a chamar de árvore. Palavra
está que vagava perdida de significado em sua mente, tal qual todas as outras
que ainda mantinham-se, estranhamente, agarradas à sonhos muito distantes.
Enquanto
arrastava-se sobre a terra seca de um mundo esquecido, tateava cegamente o
caminho a sua frente, movido por um desejo que gemia, retorcia-se e gritava,
envenenando sua alma com o fervor da agonia. A fome não o permitia descansar, envolvendo-o
num ciclo eterno que jamais chegaria ao fim. O alimento comum, por assim dizer,
não mais o saciava, e o desespero irracional em agarrar-se insandecidamente à
própria vida, era única coisa, que em meio a tanta confusão, norteava sua
mente.
O
mundo escuro que o cercava, de súbito mudou de repente. O ar opressor ganhou
espaço, circulando e brincando ao seu redor, trazendo consigo um doce e
sorridente aroma que adentrou suas narinas, preenchendo por completo os pulmões.
Dentre todos os aromas que habituara-se a sentir, aquele domou severamente sua
atenção. Era de fato diferente de tudo aquilo que um dia farejou. Criatura
alguma que já cruzara seu caminho possuía um cheiro tão forte e atrativo quando
aquele.
Levantou
a cabeça buscando, através do faro, encontrar a trilha que o levaria até a
fonte do cheiro. Sua boca já deixava escorrer por entre os dentes o gosto, trajado
pelo cheiro, de sua futura presa. Esgueirou-se lentamente pela vegetação muito
mais leve e espaçada do que antes, como aprendera a fazer de forma tão exemplar
em suas caçadas. Sorrateiramente aproximou-se de uma estrutura sólida, feita do
mesmo material que sustentava o bosque no qual vivia. Ergueu as narinas
tentando encontrar o faro novamente, e seguiu-o, circundando a estrutura.
Tateou
aquilo que parecia uma fissura, uma falha, um caminho que o levaria diretamente
à satisfação. Adentrou velozmente pela abertura, na certeza que sua presa de
forma alguma o aguardava. Tão logo avançou exibindo unhas e dentes em um grito
feroz, algo veio repentinamente ao seu encontro. Urrando para defender o
filhote, o animal pôs-se o mais alto que pôde afim de fazer recuar aquele que
atacava. O choque entre os corpos fez o ar vibrar, e o chão magoar-se ao
recebê-los num abraço doloroso.
Rolando
um sobre o outro, dançavam uma melodia agonizante, compassada por socos,
mordidas e arranhões. O desespero pela vitória, embora motivados por questões
diferentes, igualava-os como sopros dados a favor do vento, permitindo que
apenas um levantaria ao final de tudo.
Quando
o suor da exaustão já banhava sua pele, o predador, num esforço descomunal,
ergueu-se sobre o corpo de sua presa, cravando os dentes entorno do pescoço
quente e macio. Os gritos de euforia e pavor massageavam seus ouvidos,
enchendo-lhes de satisfação e calmaria. Os dedos, tal como garras, penetraram o
abdômen da criatura, que já se entregava aos últimos suspiros de sua vida. O
calor do sangue banhava sua alma, enchendo-a de paz e alivio, e a macies da
carne mastigada em sua boca, saciava a infindável sede de seu corpo como nunca
antes havia conseguido.
Satisfeito
com sua caçada, e ainda coberto pelo fluido de vida que acabara de roubar,
voltou novamente os sentidos ao ar que o cercava, ouvindo um som distante, mas
ainda assim muito perto. Movendo-se como uma serpente, esgueirou-se pelo mundo
negro, esbarrando e deparando-se com objetos que não compreendia, guiado por
soluços abafados que em algum por alí lugar se escondia.
Tateou
e cheirou um amontoado de objetos macios, diferentes de qualquer coisa que
tenha encontrado no mundo do qual viera. O cheiro, agradável e perfumado,
escondia outro muito mais doce em suas entranhas. Cavou e fuçou por entre os
tecidos, lançando-os para todas as direções, como um faminto animal a revirar o
lixo. Não demorou muito para encontrar o que com tanto fervor procurava. Agarrou
com as mãos rubras, uma pequena poção de vida, que assustada, soltou um berro
estridente e ensurdecedor.
Por
um rápido suspiro, dentro da mente daquele que um dia fora um simples lenhador,
e como homem que era, moldado pelo medo, o som, que agora rasgava-lhe
os ouvidos, foi compreendido como um choro, o choro de uma criança.
De forma
lenta e graciosa correu seus dedos sobre a pele lisa que berrava em seus
braços, aproximou-a do rosto, sentido o calor transpassar e beijar-lhe a pele
seca e sem vida da face. Tocou os lábios grossos e ressecados sobre a carne
macia, permitindo que o cheiro adentra-se lentamente por suas narinas, enquanto
perdia-se doce sabor de carne viva.
Todas
as noites a lua abraça carinhosamente um mundo corrompido, envolto pelas trevas
e esquecido pela luz. Dentre os montes e florestas, cavernas e cidades, rios e
oceanos, estão aqueles, para quem a lenda do homem que tornou-se demônio ao
devorar a própria família, viverá para todo o sempre.
- Caio Karoba
- Caio Karoba
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Texto reaproveitado de um trabalho proposto numa aula de antropologia. ( Sem revisão)
Para todos os alunos foram exigidos que assistissem à cinco filmes: Comer, rezar, amar; A outra terra; Bagdad Café; Hair - o musical; Chocolate. A atividade consistiu em utilizar os elementos e personagens dos cinco filmes em um roteiro totalmente novo e único. Abaixo segue o texto que fico feliz de ter conseguido fazer no tão pouco tempo que nos foi dado.
Another city
O astro
responsável por definir aquilo que conveniou-se chamar de dia e noite, se
mostrava quase no ponto mais alto. Seus raios, porém, transpassavam as juntas
barras de ferro, espalhando o ar morno sobre a pele pálida de um rosto
adormecido.
“
Levante-se! ” Gritou o guarda batendo contra a grade. “ É chegado o dia de tua
liberdade. Ou preferes ficar por mais quatro anos?”
Rhoda
acordou. Ofuscada, não pelo sol que já corava sua pele clara, mas pelas
lembranças anteriores a sua condenação. Lembrava-se muito bem da noite em que
os astrônomos do rei admitiram, perante uma grande praça lotada de corpos
curiosos, o vislumbre da terra celeste. Assim foi chamada aquilo, que na época
apenas se foi possível observar através de das lentes poderosas que dispunham
esses estudiosos.
Encantada
com a noticia, Rhoda subiu até o monte mais alto que conhecia. De lá, ao cair
da tarde, pôde ver a minúscula silhueta estampada ao longe no céu alaranjado.
Ponto este que passaria facilmente despercebido caso ela mesma não soubesse o
que procurava. A noite caiu, e junto a ela, Rhoda e sua carroça puseram-se a
descer pelo sinuoso caminho. Talvez por desleixe ou pura ação do destino, a
moça errou o caminho. O terreno acidentado fez o desgastado cavalo tropeçar e
perder o controle. Carroça, mulher e animal rolaram morro abaixo.
Ao
recobrar a consciência e levantar-se com dificuldade em meio a uma grande
quantidade de ferimentos e pedaços de carroça e animais e espalhados, ela pôde
vislumbrar o cenário em que se encontrava. Sua carroça havia caído sobre outra
e duas vidas humanas ceifado. Agora eram apenas uma jovem, que no mais tardar
seria condenada pela Lei do homem e de Deus, e o recém viúvo que jazia
desacordado, que caso acordado estivesse, cairia aos prantos da loucura ao ver
os cadáveres da esposa e filho estirados em meio aos destroços..
Quatro
anos depois estava Rhoda sendo levada para fora de sua prisão. Embora este,
para a maioria das pessoas, fosse o momento ideal para tentar um recomeço, para
a jovem, era apenas uma extensão de sua punição. Observada por todos com
desgraça e repulsa, ela não tinha mais espaço dentro daqueles muros.
Sem
possuir uma moradia própria, ela retornou a casa de seus pais, e, para sua
surpresa foi bem recebida por sua mãe e irmãos. Não fosse pela perspicaz
capacidade intelectual da jovem, um tanto incomum para uma súdita de classe
baixa, essa mentira ainda perpetuaria. Era obvio para Rhoda que sua estadia
naquela casa se assegurava única e exclusivamente pela obrigação com o divino
que os pais têm para com os seus filhos, independente do quanto os mesmo se
banham nas águas do pecado. A melancolia do dia a dia a consumia, a maltratava,
esfregava em sua face que não pertencia mais aquele lugar. A terra já não a
merecia, não a queria. A sua existência sobre ela não fazia muito mais sentido
do que a daquela flutuava em algum lugar acima das nuvens.
Após
uma longa manhã chuvosa, sem suportar o ar escuro e opressor do seu pequeno
quarto, Rhoda saiu de casa e caminhar pelas ruas. A cidade estava um tanto
diferente da época em que foi presa. As praças e centros eram agora tomadas por
grupos de jovens que faziam uso de poções muito mais poderosas que o vinho. Imoralidade,
rebeldia e vestes completamente inadequadas, que caso o Comte Reynoud, o líder da igreja local, os visse, condenaria
cada um ao fogo do inferno, eram a sua bandeira.
“
Ei, moça! “, gritou um jovem cabeludo de um desses grupos, “ Você tem alguma Coroa
de bronze sobrando?”
“
Pra quê precisam de dinheiro, vocês não trabalham?” Indagou a jovem um tanto
incomodada pela maneira que ele se vestia.
“ Ninguém
nessa cidade se atreve a nos dar emprego, são as ordens da igreja. Estão certos
que somos uma ameaça para a moral e os bons costumes. Acredita nisso? Como se
não fossem eles próprios os responsáveis pela guerra na qual vivemos. Por
favor, senhora. Não comemos nada há dias e esta jovem que nos acompanha está
gravida.” Disse apontando para uma moça baixa, esta que usava apenas um vestido
gasto pelo uso e algumas flores de diversas cores presas ao longo do tecido e
também no cabelo, que o acompanhava.
Rhoda
procurou nas dobras do vestido, não encontrou moedas, mas desprendeu o broche
que repousava na altura dos seios.
“ Não
tenho dinheiro, assim como vocês sou vista com desgraça. Até mesmo pelos
membros da minha família, mesmo que tentem de mim esconder. Mas pegue este
broche, talvez possam trocar por algo.’’
“
Muito obrigada!” disse-lhe a jovem. “ Venha nos visitar qualquer dia, gostaria
que a criança a conhecesse quando nascer.” E junto ao resto do grupo caminhou
até se misturarem novamente na multidão.
Dias
conturbados aqueles onde a juventude deturpava a ordem publica, pensou Rhoda.
Onde estaria a guarda real? Por onde anda o Comte de Reynoud? Tudo realmente
havia mudado em quatro anos. Como tanto pôde mudar em apenas quatro anos? Ela
não sabia, muito menos sonhava em dia poder responder. É certo que as questões
não paravam de fervilhar em sua mente e soprar em seus ouvidos. Contudo, não
era motivo este para parar a caminhada.
O
sol ainda tardaria a se pôr, e retornar para o sufocante ambiente familiar era
o que menos desejava naquele momento. Lembrou-se, ao passar vagamente os olhos
pelo céu, que já era passada a hora sexta e mesmo que seu ânimo não desejasse,
ela precisava e deveria comer. Caminhou até uma tenda de alimentos, algo muito
comum naquela cidade. Embora o rei e seus conselheiros decretassem que o valor
dos produtos deveriam ser iguais dentre todos os vendedores, para assegurar uma
eficaz arrecadação de impostos e manter controle sobre o mercado, vez por outra
os habitantes conseguiam utilizar do escambo dentro de duas atividades
comerciais.
A
tenda em questão servia diversos tipos de alimentos, desde pão ressecado até a
mais fina carne de cabra, comum apenas nos pratos daqueles pertencentes às
famílias nobres. Rhoda aproximou-se e já podia sentir o sabor dos alimentos
desfazendo-se em sua boca.
“
Por favor, senhora. Pode me servir um pedaço de pão ao leite?” Pediu-lhe sem
tirar os olhos do alimento que realmente parecia apetitoso.
A
vendedora depositou o alimento numa tigela de barro e com um baque a pousou
sobre o balcão.
“
Duas coroas de bronze.” Disse a velha firmemente.
“
Ah? Du-duas?” Gaguejou quando lembrou-se que não tinha como pagar pela comida.
“ Perdão senhora, creio que não tenho como paga-la”
“
Queres me fazer de idiota menina?” Gritou em resposta, já a puxar a tigela de
volta para si.
“
Deixe a tigela, eu pagarei por ela.” Falou uma voz abafada pela incessante
mastigação.
Rhoda
voltou-se para uma mulher madura, que devido a idade era ou já havia sido um
dia casada.
“
Obrigada, senhora. Porém, sinto dizer que não tenho com o que retribuir.”
“
Não se preocupe quanto a isso. Junte-se a mim. Meu nome é Liz, e a proposito,
senhorita, por favor, não sou mais casada.”
“ Eu
sou Rhoda. É um prazer conhece-la... Senhorita.”
Enquanto
eram trocadas mais algumas palavras, Rhoda observava as roupas, o cabelo, e
construção das frases da recém conhecida.
“
Você não é daqui, não é?” Perguntou por fim.
“
Não, estou de viagem.” Sorriu a senhora , agora, senhorita. “ Eu estava
insatisfeita com meu casamento, mas não só com isso. Perdi completamente o
gosto por tudo na vida que vivia.”
“
Posso imaginar como se sente...”
“
Foi então que um velho shaman, você adoraria conhece-lo, me disse para
encontrar um equilíbrio na minha alma. O primeiro passo do ritual consiste em me
entregar aos meus desejos mais primitivos, e aqui estamos nós.” Levou ate a
boca um pedaço de pão banhado em mel, esgotando-se do agradável sabor, como um
sedento que bebe um copo de água. “ Como eu sentia falta disso... Não engordar
para o casamento é algo que não vale mesmo a pena.”
Rhoda
comia lentamente enquanto perdia-se num olhar vago, entregue aos seus
pensamentos e conflitos internos.
“
Mas e você?”
“ E-
eu?” respondeu Rhoda ao ser tragada de volta para a realidade do momento.
“
Sim, você mesmo. Conte-me sobre você.”
A
princípio, Rhoda, não se sentiu confortável o suficiente pra contar sobre sua
vida particular para alguém que acabara de conhecer, não que ela normalmente o
fizesse com conhecidos. Contudo, tocada pela boa vontade com que aquela mulher
a tratara, ela decidiu contar-lhe sobre o perturbado estado emocional que
carregava.
“
Sabe, minha jovem? Recentemente eu aprendi uma palavra nova, ela me deu força
para partir nessa minha jornada. Talvez ela a ajude na sua.” Ergueu o lenço
para limpar os lábios sujos de mel e farelo de pão. “ Attraverssiamo.” Disse
por fim enquanto levantava-se para ir embora.
“
At-travessiamo...” deixou escapar por entre os lábios. Quando voltou-se
novamente para a mulher, esta já havia partido.
Tão grade foi a surpresa quando, na manhã
seguinte, no palanque da praça, um mensageiro informou que, a mando do rei,
seus estudiosos projetaram um novo tipo de transporte, um objeto voador movido
a ar quente. É certo que, mesmo naquela época, expandir e conquistar novos
territórios era o desejo de qualquer governante, ainda mais quando se tratava
de alguém tão jovem e inconsequente.
Com
os espaços do mapa já tão preenchidos, quem poderia imaginar que algum dia se
buscaria conquistar os céus? O homem por trás dessas ordens não poderia gozar
de um juízo perfeito. Tomar o território dos deuses para si não poderia atrair
mais desgraça do que um rei louco.
O
mensageiro continuou a transmitir firmemente para que todos ouvissem suas
palavras. Logo seria possível visitar a terra dos céus, contudo, devido a
completa segurança na viagem, inicialmente seria enviado aqueles que não fariam
falta na sociedade. Estavam convocados qualquer um dos vagabundos locais
instalados nas praças e becos, prisioneiros, pegos em adultério, e até mesmo os
desprovidos de juízo que se voluntariem para a expedição.
Rhoda
não pensou duas vezes ao colocar seu nome na lista. Junto a ela, um jovem
também assinava de forma empolgada.
“ Eu
vim das colônias para servir no exercito do rei, mas alguns novos amigos me
fizeram mudar de ideia. Isso é bem mais interessante, não acha?”. Indagou ao
olhar diretamente para Rhoda. “ Oh, perdão. Chamo-me Claude. Prazer em
conhece-la”
“ O
prazer é meu, Claude. Pode chamar-me de Rhoda.” Respondeu-lhe fazendo esforço
para sorrir, afim de demonstrar algum interesse. “ Diga-me. Por quê desistiu do
exercito para se aventurar no desconhecido?”
“
Meu pai, desde muito cedo, me ensinou que devemos todos obediência e dever para
com o senhor nosso rei. Vim até aqui decidido a servi-lo no campo de batalha.
Porém, antes de me alistar conheci um grupo de jovens um tanto estranhos para a
realidade de onde vim. Tentavam me vender um broche, que não teria serventia
nenhuma para mim, quando decidi me juntar a eles por algum tempo.” Fez sinal para
que Rhoda o acompanhasse na caminhada para fora da multidão, e continuou. “
Eles me fizeram enxergar quanta dor e sofrimento essas guerras causam, desde
então desisti de lutar portando o estandarte de qualquer reino, não enquanto
este promover a morte e a miséria de outros povos.”
“ É
uma bela visão.” Teve de admitir, “ Jamais teria conhecimento destes ideais se
não fosse por você.”
“ Eu
também me surpreendi.” Disse Claude. “ Não são só um bando de vagabundos
arruaceiros, afinal.”
“
Não, não são...” Disse Rhoda já se despedindo do futuro companheiro de viagem.
Ao
inicio da tarde, decidiu que visitaria a igreja. Embora não fosse uma pessoa
nem um pouco religiosa, algo nos grandes vitrais coloridos a atraia. Talvez
fosse a forma como a luz se refratava entre os pedaços de os formavam, banhando
o interior da grande catedral com uma variedade de cores jamais alcançadas por
nenhum pintor que sobre a terra já caminhou. Pelo menos, não sobre esta.
O
caminho até a catedral já era, em tempo
passado, confuso para aqueles que não estavam familiarizados com a labirinto
escuros e estreitos que as ruas e casas formavam. Para a jovem, que não
acompanhou as mudanças nos últimos quatro anos, a tarefa se tornava muito mais
desafiadora. As casas iam passando, cobrindo-a com a sombra fria de suas
paredes, as ruas levavam-lhe a outras, e um becos a faziam voltar para as
mesmas. Como era de se esperar, Rhoda estava perdida.
“ Boa tarde, minha jovem!” Falou uma voz atrás
de si. “ Você parece um pouco perdida. Porque não entra e toma um pouco de
chocolate quente? Venha, não se acanhe. É por conta da casa.”
Rhoda
virou-se para a voz e se deparou com uma pequena loja de pedra. Por trás do
vidro mais transparente que já vira, se encontravam doces um tanto curiosos.
Não eram, com certeza, comuns por alí. Ela entrou e sentou-se ao balcão. A
jovem dona do lugar, que apresentou-se como Vianne, logo lhe serviu-lhe a
melhor bebida que provara em toda vida. Tão rápido quanto o álcool faria consigo,
Rhoda estava falando de tudo que a perturbava, e de sua grande vontade de sumir
dali, queria poder voar até a terra celeste, e que talvez lá encontrasse a paz que tanto lhe
faltava.
“
Tenho algo que servirá exatamente pra você”. Disse a jovem Vianne, “ Tome, é o
seu favorito.”
Rhoda
levou o doce até os lábios, o sabor ela não conseguiu descrever, talvez o mesmo
não tivesse sido feito com essa intenção. Mas ela sentiu, sentiu o corpo
flutuar e toda a melancolia passar. Por alguns segundos seu espirito ficou em
paz, mas aos poucos recaiu sobre o escuro peso de antes.
“ Do
que é feito isso?”. Perguntou Rhoda.
“
Ele é feito de perdão.”. Disse a vendedora sorrindo. “ Agora vai, é hora de
trilhar o teu caminho. Tenho assuntos a tratar com o Comte Raymound e ele acaba
de chegar.”
Enquanto
Rhoda levantava-se para sair, pôde ouvir o teor daquela conversa. Ao que
parecia, o comte, acusava a mulher de abalar seus clientes com palavras
profanas e devassidão, pois uma mãe solteira que não se firma em cidade nenhuma
na qual se instala, só pode estar trazendo consigo a desgraça daquele que um
dia foi expulso das hostes celestes, contaminando as cidades com o cheiro podre
do pecado.
É
certo que as palavras da mulher não se foram tão facilmente quanto a agradável
sensação que acabara de sentir. Sendo ela uma mensageira do inferno, ou não,
para Rhoda não fazia diferença. Algo precisava ser feito, ela havia entendido, mas
o que seria tal coisa, ela não sabia. Perdão... Por que ela disse que o doce
era feito de perdão?, pensava a jovem enquanto caminhava sob o céu alaranjado
de cair da tarde. Olhou pra cima e se assustou, a terra celeste parecia muito
maior e mais próxima do que nunca esteve.
Com
exceção de um ou outra lanterna a base óleo presa numa haste da madeira ao longo
de cada rua, a chegada da noite era sempre dura, cobrindo rapidamente toda a
cidade com seu manto negro antes mesmo que alguma estrela se atrevesse a
brilhar sob ele.
Agora,
definitivamente, as ruas não eram seguras. Pessoas roubadas, mortas ou estupradas
durante este horário, se faziam de assunto matinal frequentemente, e Rhoda
sabia muito bem disso. Correu por entre as ruas e becos, buscando, quase que
cegamente, algum lugar onde poderia ficar segura. Pelo menos até descobrir como
encontrar o caminho de volta para a sua pequena, porém iluminada, residência.
Avistou,
não muito ao longe, uma pequena taberna, outrora completamente descuidada e
jogada aos ratos, mas desde que uma bruxa vinda de terras distantes e seus
truques apareceram no lugar, não faltava gente para assistir seus espetáculos
de magia e adivinhação.
Rhoda
adentrou na taberna sentindo de imediato um forte alívio. Embora não fosse tão
mais perigoso dentro do que fora, ao menos, sob a luz dos das velas e
castiçais, ninguém a atacaria de surpresa vindo de um beco mais escuro. Alguns
destes estabelecimentos funcionavam, caso o movimento de fregueses fosse
satisfatório, até os primeiros raios do dia. E este parecia ser o caso.
Pouco
mais ao fundo do salão, uma pequena porta se abriu deixando escorregar para o
palco uma senhora farta, vestindo roupas exóticas para aquela região do mapa.
“
Ela é mesmo uma bruxa?” Cochichavam alguns. “ Será que ela não vai nos
transformar em alguma criatura do pântano?” Diziam outros um pouco mais
preocupados.
“
Alguém viu a minha varinha magica? Eim, Alguém?” questionou ao publico e em seguida
apoiou a mão em forma de concha na orelha, como se para ouvir melhor a resposta
das pessoas. “ Não consigo ouvir vocês, deve ter algo tapando meu ouvido...”
A
bruxa levou os dedos até o ouvido e lentamente retirou de dentro dele algo que
parecia um graveto.
“
Ora, venham só. Aqui estava ela.” Erguendo-a no
ar para que todos vissem em meio aos aplausos.
Em
seguida passou uma das mãos ao redor da varinha, e a mesma desdobrou-se um ramo
de flores. A plateia foi a loucura entre gritos de empolgação e mais aplausos.
“ Eu
sinto alguém aqui presente está prestes a fazer uma viagem que vai muda-la”
Entoou ao repousar dois dedos da mão direita sobre a testa como forma de
concentração. “ Sim, eu sinto. Mas antes ela tem algo muito importante para
fazer aqui...”
Por
um instante Rhoda chegou a pensar que a senhora olhava diretamente para ela, e
a ideia a tomou por uma sensação de completo espanto mas logo concluiu que
todas as pessoas deveriam sentir-se da mesma forma, e voltou a relaxar.
“ É
impressionante o que Jasmin pode fazer, não é?” Perguntou-lhe a dona do
estabelecimento que estava a servir os clientes no balcão.
“
Impressionante, sim. Mas já vi farsantes por aí melhores do que ela.”
Respondeu-lhe Rhoda.
“
Será?” Riu a mulher, “ Gostaria de alguma coisa?”
“
Não, muito obrigada. Eu apenas aguardo a noite se ir para encontrar o meu
caminho de casa.”
“
Mas isso vai demorar muito. Por favor, aceite ao menos a bebida. Vamos, pode
toma-la” E serviu um pouco de cerveja escura para a jovem.
Ao
fundo a bruxa Jasmin continuava a fazer sua apresentação, volta e meia
intercalava os números práticos com sua habilidade de adivinhação e previsão.
Adivinha detalhes pessoais dos clientes e até chegava a aconselhar outros em
decisões que estavam prestes a tomar.
Foi
entre os goles de cerveja e o aplausos do público que as palavras na jovem
vendedora de Vianne, da viajante Liz, do jovem Claude e agora da bruxa Jasmin,
começaram a vagar em seus pensamentos. Poderia ser apenas o álcool, mas Rhoda
juraria para sempre que naquela noite as palavras dançaram em frente aos seus
olhos, organizando-se de forma que faziam, pela primeira vez, todo o sentido.
Chamou novamente a dona da taberna e perguntou.
“
Você conhece o Sr. Burroughs?”
“
Sim, eu o conheço. Pobre homem.” Respondeu com pesar em sua voz“ Desde que
perdeu a mulher e o filho, não sai mais de casa, vive e dorme sobre o próprio
lixo e excrementos.”
“ A
senhora saberia me informar onde ele mora?”
“
Não sei o que quer com ele, minha jovem. Mas lhe darei a informação.”
No
dia seguinte Rhoda estava batendo na porta daquele cujo a vida destruíra. Foi
para dizer que sentia muito com tudo aquilo, torcendo para que ele tirasse esse
peso que a consumia perdoando-a. Contudo, no momento devido em que o mesmo
abriu a porta perguntando o que desejava, lhe faltou coragem de faze-lo.
Ofereceu ao Sr. Burroughs, por fim, para justificar aquela visita repentina, os
serviços como arrumadeira.
Por
reconhecer que logo a sua habitação deixaria, se é que já não havia deixado, de
apresentar quaisquer condições que pudessem assegurar que algo sobrevivesse ali
dentro. E tendo em vista que inicialmente o serviço seria prestado sem custo
algum ou compromisso, ele aceitou, permitindo-a adentrar na casa.
Conforme
Rhoda limpava e organizava toda a casa, ela percebeu que assim como ela, aquele
homem viveu preso e recluso pelos últimos quatro anos, apertando-lhe ainda mais
a culpa que sentia. Se lhe faltavam motivos para viver, agora ela encontrara um
bastante nobre. Ajudar o viúvo a se reintegrar não apenas na sociedade, mas
também em suas condições físicas e emocionais.
As
horas se tornaram dias, e os dias tornaram-se semanas. O Sr. Burroughs nunca
havia se sentido tão bem desde a morte de sua família. Agora ele comia os chocolates
da senhorita Vianne, passeava junto a Rhoda por entre os depravados, ao seu
ver, apenas jovens inexperientes que vivam suas vidas nas praças, e até saía
para assistir os show de uma bruxa estrangeira numa taberna da cidade. Não demorou
muito mais do que isso, e ambos, acusada e vítima estavam ligados por laços
muito mais fortes do que uma relação de patrão e empregado permitiria.
A
relação não durou muito, pois então Rhoda foi convocada para partir junto
aqueles que dariam o primeiro passo na exploração da terra celeste. Ao contar sobre
o fato e de sua decisão de partir, ele não suporta a ideia. Pela primeira vez,
ele declara os seus sentimentos por ela. Conta como a sua vida não tinha
sentido e de como estava infeliz até ela aparecer e reconstruir o seu espirito
a muito destroçado.
Jogado
aos seus pés, o homem suplica que ela não o deixe. Não agora que estão tão
próximos de firmar um compromisso. Ela tão bela e jovem, ele tão mais
experiente e com condições de mantê-la. Não havia, do ponto de vista de todos,
uma razão para acabar com tudo isso.
Caída
novamente da esfera negra do remorso, dessa vez por destroça-lo novamente,
Rhoda decide contar a verdade. Disse-lhe que havia sim uma única e grande
razão, a de que ela era o responsável pelo acidente que levara embora sua
esposa e filho há quatro anos atrás.
Surtado
de raiva, o homem se lança sobre a jovem apertando-lhe o pescoço. Porém desiste
quando o brilho dos olhos da jovem desaparece e ela começa a perder a
consciência. Caída no chão, Rhoda recupera o fôlego e vai embora sem olhar para
trás Segue pelas ruas encobertas pelo manto da noite, odiando-se por causar
apenas ainda mais dor ao pobre homem, que culpa nenhuma tem.
Na
manhã seguinte foi levada, junto ao jovem que conhecera quando se alistou e
muitos outros indivíduos, sendo sua grande maioria aqueles vistos como a
escória da sociedade, até a base de treinamento para a grande viagem acima das
nuvens.
Não
muito longe, instalados no monte mais alto das redondezas, o mesmo em que Rhoda
avistou pela primeira vez a terra celeste, treinaram ao longo de toda a semana.
A jovem aprendeu sobre variantes de temperatura, comportamento dos ventos e
deslocamentos mais bruscos de ar, sobre os tipos de nuvens e o mecanismo de
funcionamento, embora todos estes conhecimentos foram passados de forma muito
rápida e precária.
No
dia do lançamento, muitos curiosos espalhavam-se pela campina. Praticamente
todos queriam ver, com seus próprios olhos, se os tais balões iriam mesmo voar.
E se voassem, quanto tempo levaria até caírem? Certamente, aquele era o evento
mais aguardado do ultimo século naquele pedaço da terra.
Em
fila única, um à um, os tripulantes embarcaram naquilo que se assemelhava muito
a um barco de porte médio, porém, com um grande balão tomado de ar quente preso
logo acima da estrutura principal.
“ É
um engano, eu não sou o Bukowski! Eu não sou o Bukowiski!” Gritava um rapaz
enquanto era agredido e empurrado pelos guardas para dentro do convés.
Rhoda
viu aquilo como apenas um jovem com medo, e pensou que talvez ela também
devesse estar assim, e realmente estava. Sentia medo, medo de ter falhado em
tudo que já se propôs a fazer, medo de jamais ser aceita onde quer que esteja,
medo de continuar viva com toda essa culpa pesando-lhe nos ombros da alma.
O
convés ergueu-se no ar, e lentamente foi se movendo para frente. Rhoda olhou
para baixo, e viu como tudo parecia pequeno ali de cima, como tudo parecia não
ter importância. Avistou a sua frente, mas ainda muito distante, a terra
celeste, e sentiu animada. Fechou os olhos e seu espirito começou a flutuar em
paz e harmonia, lembrou-se do sabor do chocolate e agora podia descreve-lo. Ele
tinha o gosto de voar. E então sussurrou para o vento
“ Eu
me perdoo.”
- Caio Karoba
sábado, 16 de agosto de 2014
A criação
A Criação.
No inicio o mundo era frio e sem vida.
Solitário, repousava tal qual a longínqua estrela insone,
Dormindo suavemente no silêncio do espaço.
E disse Deus: Que haja a luz!
E assim a luz se fez.
Orgulhosa e altiva como era, difundiu-se em tom elegante,
Refletindo cores de onde outrora apenas haviam trevas.
E Viu Deus que isso era bom.
Do alto, Ele observou.
A matéria iluminada carecia-lhe de jeito e forma,
Seu traço disforme e grosseiro escarrava-lhe a própria face,
Rasgando vorazmente de dentro de seu peito,
O suspiro da perfeição.
E disse Deus: Erguei da terra toda a rocha, e desta faça-se o
corpo!
E assim se fez.
Uma pós outra foram sobrepostas por toda a superfície,
Entoando o baque surdo de um sonho já esquecido.
E viu Deus que isso era bom.
Do alto, Ele observou.
As rochas convocadas das profundezas,
Repousavam imóveis e serenas.
Brindando-lhe com um traço solene e circular,
Tal qual foi feita a gota do orvalho.
E disse Deus: Crescei da terra as plantas, e delas faça-se o
sustento.
E assim se fez.
Levantaram-se as arvores de todos os tamanhos,
Enroscando suas longas raízes como garras, no interior da terra.
E viu Deus que isso era bom.
Do alto, Ele observou.
O jovem mundo sorria num tom singular,
Esboçando de jeito tímido sua forma arredondada.
Sustentada unicamente em abraço eterno,
Aguardava em silêncio.
E disse Deus: Brotai do solo o oceano, e nele navegarão doze
ilhas,
pois destas surgirá a vida.
E assim se fez.
Ergueram-se sobre as aguas tão leve quanto garças,
Deleitando-se com o baile das ondas ao seu redor.
E viu Deus que isso era bom.
Do alto, Ele observou.
As doze porções de terra tomaram pra si a superfície do mar,
Trazendo consigo paz, satisfação e beleza.
Agora existia a vida,
Mas faltava-lhe o movimento.
E disse Deus: Erguei no céu os astros, pois destes se fará o
tempo.
E assim se fez.
Separou então o dia da noite,
Em seguida a hora dos segundos.
E viu Deus que isso era bom.
Do alto, Ele observou.
O três astros celestes circulavam o jovem mundo,
Derramando seu brilho sobre as ilhas uma de cada vez.
Presenteando cada uma com o tempo,
E delas recebendo o lugar na existência.
E disse deus: De minha mão dar-lhe-ei a força, pois andarás por
tua conta própria.
E assim se fez.
O mundo então começou a girar,
Governando em seu ritmo constante
Os homens, seus deuses e a própria Terra.
- Caio Karoba
quarta-feira, 14 de maio de 2014
domingo, 12 de janeiro de 2014
Um conto: O interrogatório.
O interrogatório
Dentre todos os mistérios que vagam a esmo
pelo cosmo, talvez a Terra seja o mais obscuro de todos. Abandonada a própria
sorte próxima a grande figura brilhante, outrora visto como o próprio Deus,
ela abriga criaturas tão pequenas e frágeis, dotadas de quase nenhuma
consciência. Tais criaturas não apenas possuem a esplendida capacidade de
conjurar sonhos, mas de tornar real seus pesadelos.
“Acho que ela desmaiou, senhor.”, disse um
jovem rapaz com voz e cabeça baixa.
“Acorde-a!”, Respondeu-lhe com firmeza
e autoridade.
O Jovem caminhou até um tanque de madeira,
com o auxilio do balde surrado e desgastado pelo constante uso, ele pegou uma
quantidade generosa da água escura e esverdeada pelos fungos que nela
germinavam.
“Ande com isso rapaz, não percamos mais
tempo!”, berrou e o olhou-o com um tom de reprovação.
Com os braços trêmulos o jovem derramou
por completo o conteúdo do balde sobre a cabeça da moça. Os longos cabelos
negros que lhe cobriam o rosto, agora jaziam completamente encharcados e
colados junto à pele suja de sua face.
“Novamente!”, ordenou o homem sem desviar
o olhar da jovem por um só segundo.
Desta vez, como quem acorda do sonho da
morte, a moça ergueu a cabeça desesperada a procura de ar. O brusco movimento
voltou a lhe ferir seus braços calejados e presos, o cheiro do mofo e madeira
apodrecida a Fez recordar de onde estava.
“Vejo que finalmente acordou, senhorita.
Com o que sonhava? Vamos, conte pra nós.”
Por entre os fios de cabelos molhados, ela
o observou com a respiração ofegante e os olhos a pesar em lagrimas.
“Ao que parece meu rapaz ”, disse o homem
enquanto remexia alguns instrumentos no balcão. “ vamos continuar aqui por mais
algum tempo.”
O homem se dirigiu até a pequena lareira
escavada na parede fria de pedra, sobre ela, velhas ferramentas repousavam em
um sono profundo, aguardando o dia em que voltariam a ser reutilizadas. Com os
dedos magros retirou delicadamente uma longa alavanca de ferro do seu local de
descanso, logo em seguida mergulhou uma de suas extremidades sob as brilhantes
brasas banhadas pelas chamas alaranjadas.
Voltou-se na direção do balcão, onde
apanhou um alicate. Diferente dos instrumentos expostos na parede, este se
mostrava muito bem cuidado e conservado. “ Queira pende-la as mãos com mais
firmeza, sim?”, disse ao olhar o jovem rapaz que não parecia nem um pouco
confortável com aquela situação.
Presa à cadeira, a jovem permanecia
incorrupta. Os olhos escuros pesavam-lhe no rosto, projetando toda a sua face
para baixo. Por entre os lábios ressecados esboçou abafados gemidos enquanto as
cordas apertavam ainda mais os braços cobertos de ferimentos e hematomas.
“Por que não evita mais sofrimento e
confessa por fim o que fez? ” Dirigiu-lhe o homem enquanto se aproximava a
pesados passos.
“Olhe pra mim quando falo com você!”,
rugiu olhando-a de cima.
Lentamente ela levantou a cabeça tremula
na direção de seu inquisidor.
“Você nega que nos últimos seis meses
trabalhou na propriedade dos Vincent, e que lá cometeu tamanha barbaridade?”
Perguntou severamente.
Motivado pela ausência de resposta, homem
deu um passo a frente agarrando a unha do opositor esquerdo da prisioneira. “
Você nega ter servido na residência dos Vincent nos últimos 6 meses?” indagou
tão lentamente quanto forçava a ferramenta .
Tremendo de dor, a jovem engolia em seco
os gemidos quase sempre por mal sucedida. Com um ultimo esforço mais forte a
unha fora arrancada do dedo pálido. O sangue quente viajou pelo ar até por fim
derramar-se sobre o vestido, que embora sujo e encardido, trazia indícios que
no passado fora tão belo quanto sua dona um dia foi.
Dotado de mãos firmes e expressão
inabalável, o interrogador já estava por arrancar a quarta unha quando
finalmente a mulher gritou desesperada. “ Sim! Eu trabalhei! Eu trabalhei...” e
sucumbiu aos suspiros pesados de quem realizou um grande esforço.
“Muito bem, muito bem. Vejo que estamos no
mesmo barco agora.” Disse o com um certo prazer em sua voz. “ Agora fale sobre
seu trabalho. O que fazia na residência?” e se virou de volta ao balcão atrás
de si.
“Eu era uma criada, senhor. Apenas isso.”,
respondeu a jovem em um tom quase inaudível.
“Continue!”
“Nada a mais que isso. Eu limpava,
cozinhava, e as vezes cuidava das crianças...”
“Você não esta sendo sincera minha jovem.
Sei que fazia tudo isso, mas sei que também fez algo a mais. Algo proibido
talvez?” e se virou deixando a mostra um pesado martelo balançar entre seus
dedos.
“Eu juro senhor, pelo deus cristo e sua
mãe que jamais roubei nada.” Disse em voz falha já por imaginar o
martírio que a aguardava. “ Eu juro...”
“Eu acredito em suas palavras, mas sabe
que não é por isso que estamos aqui.”
Em um movimento rápido e surdo, o martelo
desceu impiedosamente sobre a mão direita da prisioneira. Sua cabeça sacudiu
violentamente pra todos os lados, movida numa ferocidade capaz de arranca-la
fora do corpo. O grito desesperado e estridente, nem de longe fez jus a tamanha
dor que lhe afligia. Tão logo o pesado objeto ergueu-se, a pálida mão tornou-se
tão escura e inchada quanto a carne podre de um animal morto há dias
“Por que não falamos agora sobre seus
hábitos noturnos? Outras criadas alegam que você as deixava quase todas as
noites e que seu destino permanecia um mistério. Aonde esteve todas estas
noites?” disse enquanto caminhava lentamente ao redor da acusada.
“Jamais sai durante a no-noite. Nunca,
nun.. nunca.” Respondeu por entre os cruéis afagos da dor.
“Mentira!”, retrucou levantando-lhe o
queixo com o martelo. “ Aonde esteve todas aquelas noites?”
“Eu nunc...”, foi capaz de dizer antes de
ser interrompida pelo pesado abraço desferido contra seu rosto.
“Eu pergunte aonde você foi!” vociferou
contra a face ligeiramente deformada pela fratura do osso e comprimida pelo
inchaço que já se formava.
De cabeça baixa, as únicas palavras que
conseguia lembrar chegavam aos lábios umedecidas pelo sangue ainda quente que
agora deslizava ao longo do pescoço e seios.
“Flo-floresta... Eu... ” Falou quase
desfalecida.
“O que fazia na floresta no meio da noite,
creio que conhece o perigo de andar por aí sozinha no escuro, não? ” Perguntou
o homem já um tanto satisfeito com o progresso.
“Ervas, eu procurava por ervas.”
“Para qual finalidade? ”
“Remédios, eu-eu fazia remédio com elas.”
O homem caminhou com um ar intrigante pela
sala, e por fim perguntou:
“Como e para quem?”
“O meu filho senhor, ele nasceu muito
doente... Para que não fosse sacrificado por invalidez eu o escondi na mata e
lá cuido dele.”
“E onde aprendeu a usar o poder das ervas
ao seu bel-prazer?” Perguntou um tanto curioso.
“Um, um livro...” Disse a jovem após
alguns instantes de silêncio.
O homem soltou uma gargalhada, incitando
que outros presentes também o acompanhassem.
“Um livro?”, riu novamente. “O que quer
uma criada com um livro? Vai dizer agora que aprendeu a ler com as plantas e
animais?”
O som das vozes e risadas atravessavam
como eco os ouvidos da jovem, a forte pressão do inchaço no rosto a
impedia de abrir totalmente os olhos. Sua respiração tornava-se cada vez mais
fraca e espaçada mergulhando-a novamente na escuridão de sua mente.
***
“Acorde-a!”
Mais uma vez, completamente suja e
encharcada, ela estava de volta ao interrogatório. Olhou com dificuldade em
volta, tudo parecia como antes, exceto ela mesma. Sobre sua cabeça, um tipo de
capacete composto por hastes de ferro repousava suavemente.
“Rapaz, faça o favor.”, disse o homem ao
estender a mão na direção do utensílio.
Como um cachorro treinado, o jovem se
moveu rapidamente para trás da prisioneira, e tão logo a girar a pequena
alavanca. Lentamente as hastes começaram a se mover pressionando um aro muito
bem encaixado na cabeça da jovem.
Sentindo o metal frio apertar cada vez
mais seus pensamentos, a mulher sacudiu-se em desespero.
“Ahhh, não. Eu já falei tudo, por favor
não!”
“Sabemos que sim, mas ainda nos falta um
pouco mais.” Falou tranquilamente. “ Aperte!”
A jovem rugiu de dor, revirando os olhos e
retorcendo os dedos que ainda se moviam, ela gritava, pedia e jurava para que
aquele sofrimento acabasse.
“Já chega!”
Tão lentamente quanto apertaram, as hastes
agora afrouxavam-se ao redor do crânio. Na testa da jovem era possível ver
claramente a depressão escurecida pelo sangue preso que assinava em nome da tal
brutalidade.
“Os homens que trabalham na fazenda alegam
que muitos animais desapareceram ou morreram de forma misteriosa desde que passou
a trabalhar na residência. Está ciente disso?”
“Sim senhor, todos souberam destes
eventos. O senhor Milton acredita ter sido obra de algum animal.” Respondeu com
a respiração pesada.
“Ele chegou a comentar que tipo de animal
poderia ser?”
“Não, nunca soube dizer.”
“Pois eu digo que não foi nenhum animal.”
Disse o homem postando-se bem diante da jovem.
Ela levantou os olhos bem de encontro aos
deles, durante alguns instantes o absoluto silencio tornou-se ensurdecedor.
“ Foi você!”
Os olhos da judiada mulher se abriram num
repentino espanto mediante a acusação que lhe abatera tão forte o peito.
“Desde que essa desgraçada entre nós se
fez presente,” Levantou a voz para que todos no recinto o ouvissem claramente.
“ Não só os Vincent, mas também outros proprietários notaram eventos estranhos.
Desde a morte de animais até uma seca repentina de plantações. Poços de água
podre e uma peste maldita assolando quem quer que ande sobre a terra!”
Murmúrios em concordância tomaram o ar a
sua volta, satisfeito com a aprovação ele continuou.
“Todas as calamidades tiveram inicio
quando esta desconhecida chegou à cidade, pelo que soube ninguém a conhecia,
nem mesmo já se ouviu falar de sua família. Além disso ela alegou perante
vossos olhos que possui um filho mesmo não sendo casada. Com todo respeitos aos
senhores, mas esta não passa de uma fornicadora condenada ao inferno, e por
onde quer que passe arrastará consigo a desgraça!”
Ele caminhou ligeiramente de volta a
lareira de onde retirou a longa alavanca, esta agora gozava de uma extremidade
tão brilhante e quente quanto o próprio fogo do inferno. Lentamente aproximou-a
do olho direito da mulher, que a essa altura já havia chorado rios inteiros de
água salgada.
“Diga quem é você e de onde veio. Diga!”,
gritou ao aproximar ainda mais o ferro em brasa.
O medo não a permitiu falar uma só palavra
até que a luz beijasse seu olho. O grito estridente fez tremer as paredes e
ensurdeceu os ouvidos de todas as almas que em seu plano carnal se faziam
presentes.
O súbito barulho entoado pelas inúmeras
vozes berrando e gritando ao mesmo tempo, foi cessado imediatamente com uma
forte pancada na porta. Por ela entrou um homem de baixa estatura e rosto
assustado, sua roupa suja e surrada indicava que havia andando por terreno difícil
e coberto por vegetação. Há passos lagos e um pouco ofegante aproximou-se da
autoridade vigente.
“Vasculhamos a floresta, senhor.” Disse ao
retirar o chapéu em respeito e pousa-lo sobre o braço.
“E o que encontraram?”, Perguntou o homem
demonstrando muito interesse.
“Uma criança disforme. As mulheres mal
aguentam olhar em sua direção, muito menos diretamente para sua face. Gritam e
amaldiçoam-na como o filho do demônio.”
A jovem continuava a se mover inquieta
pela dor que a assombrava, forçando os braços amarrados na esperança de
conseguir solta-los.
“Acharam mais alguma coisa?”
“Um dos volumes proibidos do Alh’ha
Debuh.”
O homem fechou os olhos com muito pesar,
suas sobrancelhas brancas pareciam querer se tocar enquanto pesadas gotas de
suor escorriam pela sua rala barba. Decidido caminhou de volta até a moça, que
relutava para se livrar das amarras. Curvou-se lentamente até ficar cara à cara
com aquele rosto triste, e agora desfigurado.
“Eu sei quem você é...”, disse olhando na
escuridão de seu único olho ainda aberto . “ Bruxa!”
Vozes de espanto e acusação ecoaram por
entre as frias paredes de pedra. Dois homens altos trajando roupas de guarda
aproximaram-se pesadamente da mulher, que agora sacudia-se violentamente em
desespero, e imóveis aguardaram ordens.
“Queimem-na!”, Falou por fim num tom seco.
Os soltados desamarraram a condenada e só
com muita brutalidade a mantiveram sob controle.
“Ahhhh, Não! Por tudo que há de mais
sagrado, senhor! Eu não sou bruxa, eu não sou!”, gritava e rugia
desesperadamente a ponto de romper os limites de sua voz.
Enquanto era arrastada pra fora alguns dos
presentes na sala se benziam, outros lhe amaldiçoavam com fortes agressões na
cabeça e estômago, ou apenas se limitavam a cuspir-lhe a face.
“Esta já é a terceira condenada esta
semana, padre.” Disse o jovem rapaz ao se aproximar do cansado inquisidor. “
Acha que encontraremos mais alguma?”
Ele calmamente retirou um lenço do bolso e
enxugou o suor do rosto, olhou em direção ao jovem lamentando que ele tivera
sido obrigado a presenciar o tamanho horror daquela noite.
“Eu começo a pensar, meu bom rapaz, que
bruxas não existem.”
-
Caio Karoba
Assinar:
Postagens (Atom)