terça-feira, 14 de outubro de 2014

Um conto: O pedido



O pedido

A pálida luz da lua, enaltecida pelo espesso véu negro da noite, tecia seus braços luminosos tocando agora a superfície de um mundo ainda jovem, e como tal, completamente tomado pelo delírio de ser, vagando, perdido, por entre as próprias fantasias.



O longo e silencioso suspiro das arvores fora quebrado conforme pesadas botas de couro deformavam o solo logo abaixo de si. Uma respiração ofegante roubava-lhe a vez da fala, ocupando todo o ar que dançava friamente ao seu redor. A tensão, denunciada pelas gotas de suor que escorriam lentamente sob a pele, crescia a cada passo dado em direção ao destino traçado entre as paginas amareladas de um antigo exemplar, envolto em uma grossa camada de pano, repousado sob o braço. Embora antigo e maltratado pelo tempo, trazia ainda consigo a beleza que tivera no dia em que fora escrito. Sua capa ornamentada em um couro batido já desgastada e sem brilho, não deixava a restar duvidas de que tal objeto fora moldado por sobre a mais fina matéria, e perdido em um tempo, que transcendente às lembranças, havia deixado de existir.
Os braços e pernas feridos pelo trajeto forçado mata adentro, perpetuavam sua interminável luta, abrindo caminho por entre os galhos secos e pontudos de uma mata cada vez mais fechada e densa. Os calçados já completamente subjugados pela lama, sentiam dificuldade de manter-se num curso constante, resultantes à dor que agora percorriam os membros inferiores. E em meio ao silencio berrante da noite, a língua ressecada esfolava o céu da boca, repetindo para si mesma que agora faltava pouco.
Não demorou muito mais tempo para que avistasse, por entre os troncos negros, o reflexo proveniente das águas. Finalmente havia chegado ao seu destino. Exausto e ofegante, aproximou-se do lago, caindo sobre os joelhos e permitindo que a fria terra úmida se moldasse ao redor dos dedos de sua mão.
Após recuperar o fôlego, roubado pela árdua caminhada, repousou o velho livro bem a sua frente. Correu os dedos por paginas finas, porém muito pesadas, buscando aquela que era única entre tantas outras iguais. Suavemente fechou-se no escuro de sua mente, e tão solene quanto o gemido das arvores ao seu redor, começou a entoar uma prece cada vez mais alto.
  “ Aquela que habita o coração negro de todos que são um ; Mãe da sombra e Rainha das trevas; Diante do pobre servo aparece-te; Do sangue dele ergue tua força; De sua alma eleva teu espirito; Conceda a este que lhe serve um suspiro de pedido.”
Abriu os olhos e correu sua visão pelo cenário que o abraçava, tudo permanecia como antes, nem mesmo a Dama da noite mostrava, em seu percurso habitual, que o tempo havia se passado. Sentiu-se decepcionado, porém dignou-se a tentar mais uma vez, afinal havia chegado até ali e alguma parte do todo merecia, por excelência de causa, ser real. Dessa vez curvou-se a ponto de sentir a terra fria beijar sua testa, entoando novamente sua prece, erguendo a voz o mais alto e encorpada quanto fosse possível para alguém entregue ao estado em que se encontrava. O vento cortava friamente as árvores que gargalhavam com o balançar de suas folhas. Se riam de prazer ou de histeria, aquela altura o pobre homem não sabia dizer.
O eco das palavras finais dissipou-se do ar, fugindo-lhe ao alcance dos ouvidos. Lentamente, e já sem esperança, levantou o corpo, e assim também  sucedeu-se seus olhos. O susto o fez cambalear pra trás, caindo sobre a lama escura formada pelo abraço gélido entre a água do lago e a terra que lhe servia de cálice. Ali, caído e paralisado pelo medo, emitia um forte grito de pavor, audível apenas ao ouvido daquelas que outrora foram chamadas de almas.
  “ Quem és?” Disse uma voz antiga arrastada, oriunda de um vento esbranquiçado. “ O que queres vindo até aqui?”
Ainda tremulo, o homem avistou o livro que agora dormia tranquilamente nos braços daquela que lhe falava.
  “ E-eu..” Tentou responder, mas as palavras pareciam agarra-se a sua garganta como se temessem ser pronunciadas.
Longos cabelos brancos ondulavam junto à vestes de mesma cor, dissolvidos num caminhar elegante, dado para fora da água escura.
  “ Quem és, e o que queres aqui?” Indagou a voz num tom mais forte e imponente.
  “ Um.. um lenhador, apenas isso...” Conseguiu dizer, sem olha-la nos olhos, se é que a coisa também os tinham. “ Vim da Velha cidade.”
  “ Hmm. Então ela ainda existe?”, disse a entidade como se lembrasse de algo há muito esquecido. “ Vocês são como uma praga que se alimenta do próprio veneno. Tão persistentes quanto inconvenientes... Porém, não viverão para sempre.”
Continuou a aproximar-se devagar. Suas vestes se arrastavam sobre a terra escura, muito embora parecessem tão limpas e claras quanto às tardes ensolaradas de verão.
  “ Onde encontrou esse livro?” Questionou de forma pesada e acusativa. “ Não deveria homem nenhum tê-lo!”
  “ En- encontrei-o. Não o roubei, eu lhe juro... eu juro.” Respondeu, lutando para olha-la diretamente. “ Tentei lê-lo, mas não o compreendi. Apenas a parte que me trouxe até aqui.”
O vulto branco, que parecia tremular entre diferentes estados de matéria, ora solido como rocha, ora intocável como uma miragem, caminhava ao redor do lenhador ainda jogado no chão. Seus olhos acinzentados contemplavam o vazio, como se estes se perdessem perante o vislumbre de um mundo invisível para quase toda a existência.
“ O que queres de mim?”, perguntou ao parar frente as costas do homem.
Após um silêncio que permitiu que o longínquo murmúrio do bosque fosse por eles ouvido, o homem ergueu o rosto a contemplar o céu que cobria-lhes com seu manto bordado em estrelas.
“ Eu quero viver para sempre!” Foram as palavras que saltaram graciosamente de seus lábios.
“ Pois que assim seja.” Disse a antiga figura branca enquanto caminhava em direção ao lago, ajoelhando-se a sua margem.
“ O.. O livro mencionava um preço...” Disse o homem em voz baixa.
“ Não te preocupes quanto a isso, criança. Não faço de tudo por aquilo que recebo, quanto mais a quem me veio com tão forte e honesto desejo.” Respondeu solenemente.
Enquanto caminhava de volta ao ainda caído lenhador, o reflexo vindouro das águas parou de sorrir em sua superfície, que agora se mostrava completamente negra e opaca. O ar tornou-se surdo e pesado, decaindo na escuridão a cada passo dado pela entidade, que permanecia tão clara e luminosa quanto o dia.
“ A lua escondeu-se sob nuvens... Tão distante, mas ainda assim tão sábia. Não achas?” Murmurou ao se abaixar diante do homem que tremia sem saber o que o aguardava. Aproximou os finos dedos cobertos pela espessa lama do lago em direção ao rosto assustado.
“ Abra-te os olhos!”
Tão logo o lenhador descolou as pálpebras tremulas, tudo o que outrora conheceu tornou-se escuridão e vazio.

                                                     *****

Grossos dedos enrijecidos pelas constantes esfoliações e cascas de feridas, arranhavam a superfície rugosa de algo que um dia aprendera a chamar de árvore. Palavra está que vagava perdida de significado em sua mente, tal qual todas as outras que ainda mantinham-se, estranhamente, agarradas à sonhos muito distantes.
Enquanto arrastava-se sobre a terra seca de um mundo esquecido, tateava cegamente o caminho a sua frente, movido por um desejo que gemia, retorcia-se e gritava, envenenando sua alma com o fervor da agonia. A fome não o permitia descansar, envolvendo-o num ciclo eterno que jamais chegaria ao fim. O alimento comum, por assim dizer, não mais o saciava, e o desespero irracional em agarrar-se insandecidamente à própria vida, era única coisa, que em meio a tanta confusão, norteava sua mente.
O mundo escuro que o cercava, de súbito mudou de repente. O ar opressor ganhou espaço, circulando e brincando ao seu redor, trazendo consigo um doce e sorridente aroma que adentrou suas narinas, preenchendo por completo os pulmões. Dentre todos os aromas que habituara-se a sentir, aquele domou severamente sua atenção. Era de fato diferente de tudo aquilo que um dia farejou. Criatura alguma que já cruzara seu caminho possuía um cheiro tão forte e atrativo quando aquele.
Levantou a cabeça buscando, através do faro, encontrar a trilha que o levaria até a fonte do cheiro. Sua boca já deixava escorrer por entre os dentes o gosto, trajado pelo cheiro, de sua futura presa. Esgueirou-se lentamente pela vegetação muito mais leve e espaçada do que antes, como aprendera a fazer de forma tão exemplar em suas caçadas. Sorrateiramente aproximou-se de uma estrutura sólida, feita do mesmo material que sustentava o bosque no qual vivia. Ergueu as narinas tentando encontrar o faro novamente, e seguiu-o, circundando a estrutura.
Tateou aquilo que parecia uma fissura, uma falha, um caminho que o levaria diretamente à satisfação. Adentrou velozmente pela abertura, na certeza que sua presa de forma alguma o aguardava. Tão logo avançou exibindo unhas e dentes em um grito feroz, algo veio repentinamente ao seu encontro. Urrando para defender o filhote, o animal pôs-se o mais alto que pôde afim de fazer recuar aquele que atacava. O choque entre os corpos fez o ar vibrar, e o chão magoar-se ao recebê-los num abraço doloroso.
Rolando um sobre o outro, dançavam uma melodia agonizante, compassada por socos, mordidas e arranhões. O desespero pela vitória, embora motivados por questões diferentes, igualava-os como sopros dados a favor do vento, permitindo que apenas um levantaria ao final de tudo.
Quando o suor da exaustão já banhava sua pele, o predador, num esforço descomunal, ergueu-se sobre o corpo de sua presa, cravando os dentes entorno do pescoço quente e macio. Os gritos de euforia e pavor massageavam seus ouvidos, enchendo-lhes de satisfação e calmaria. Os dedos, tal como garras, penetraram o abdômen da criatura, que já se entregava aos últimos suspiros de sua vida. O calor do sangue banhava sua alma, enchendo-a de paz e alivio, e a macies da carne mastigada em sua boca, saciava a infindável sede de seu corpo como nunca antes havia conseguido.
Satisfeito com sua caçada, e ainda coberto pelo fluido de vida que acabara de roubar, voltou novamente os sentidos ao ar que o cercava, ouvindo um som distante, mas ainda assim muito perto. Movendo-se como uma serpente, esgueirou-se pelo mundo negro, esbarrando e deparando-se com objetos que não compreendia, guiado por soluços abafados que em algum por alí lugar se escondia.
Tateou e cheirou um amontoado de objetos macios, diferentes de qualquer coisa que tenha encontrado no mundo do qual viera. O cheiro, agradável e perfumado, escondia outro muito mais doce em suas entranhas. Cavou e fuçou por entre os tecidos, lançando-os para todas as direções, como um faminto animal a revirar o lixo. Não demorou muito para encontrar o que com tanto fervor procurava. Agarrou com as mãos rubras, uma pequena poção de vida, que assustada, soltou um berro estridente e ensurdecedor.
Por um rápido suspiro, dentro da mente daquele que um dia fora um simples lenhador, e como homem que era, moldado pelo medo, o som, que agora rasgava-lhe os ouvidos, foi compreendido como um choro, o choro de uma criança.
De forma lenta e graciosa correu seus dedos sobre a pele lisa que berrava em seus braços, aproximou-a do rosto, sentido o calor transpassar e beijar-lhe a pele seca e sem vida da face. Tocou os lábios grossos e ressecados sobre a carne macia, permitindo que o cheiro adentra-se lentamente por suas narinas, enquanto perdia-se doce sabor de carne viva.



Todas as noites a lua abraça carinhosamente um mundo corrompido, envolto pelas trevas e esquecido pela luz. Dentre os montes e florestas, cavernas e cidades, rios e oceanos, estão aqueles, para quem a lenda do homem que tornou-se demônio ao devorar a própria família, viverá para todo o sempre.


                                                                                                   - Caio Karoba


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Texto reaproveitado de um trabalho proposto numa aula de antropologia. ( Sem revisão)


Para todos os alunos foram exigidos que assistissem à cinco filmes: Comer, rezar, amar; A outra terra; Bagdad Café; Hair - o musical; Chocolate. A atividade consistiu em utilizar os elementos e personagens dos cinco filmes em um roteiro totalmente novo e único. Abaixo segue o texto que fico feliz de ter conseguido fazer no tão pouco tempo que nos foi dado.



                                       Another city

O astro responsável por definir aquilo que conveniou-se chamar de dia e noite, se mostrava quase no ponto mais alto. Seus raios, porém, transpassavam as juntas barras de ferro, espalhando o ar morno sobre a pele pálida de um rosto adormecido.
  “ Levante-se! ” Gritou o guarda batendo contra a grade. “ É chegado o dia de tua liberdade. Ou preferes ficar por mais quatro anos?”
Rhoda acordou. Ofuscada, não pelo sol que já corava sua pele clara, mas pelas lembranças anteriores a sua condenação. Lembrava-se muito bem da noite em que os astrônomos do rei admitiram, perante uma grande praça lotada de corpos curiosos, o vislumbre da terra celeste. Assim foi chamada aquilo, que na época apenas se foi possível observar através de das lentes poderosas que dispunham esses estudiosos.
Encantada com a noticia, Rhoda subiu até o monte mais alto que conhecia. De lá, ao cair da tarde, pôde ver a minúscula silhueta estampada ao longe no céu alaranjado. Ponto este que passaria facilmente despercebido caso ela mesma não soubesse o que procurava. A noite caiu, e junto a ela, Rhoda e sua carroça puseram-se a descer pelo sinuoso caminho. Talvez por desleixe ou pura ação do destino, a moça errou o caminho. O terreno acidentado fez o desgastado cavalo tropeçar e perder o controle. Carroça, mulher e animal rolaram morro abaixo.
Ao recobrar a consciência e levantar-se com dificuldade em meio a uma grande quantidade de ferimentos e pedaços de carroça e animais e espalhados, ela pôde vislumbrar o cenário em que se encontrava. Sua carroça havia caído sobre outra e duas vidas humanas ceifado. Agora eram apenas uma jovem, que no mais tardar seria condenada pela Lei do homem e de Deus, e o recém viúvo que jazia desacordado, que caso acordado estivesse, cairia aos prantos da loucura ao ver os cadáveres da esposa e filho estirados em meio aos destroços..
Quatro anos depois estava Rhoda sendo levada para fora de sua prisão. Embora este, para a maioria das pessoas, fosse o momento ideal para tentar um recomeço, para a jovem, era apenas uma extensão de sua punição. Observada por todos com desgraça e repulsa, ela não tinha mais espaço dentro daqueles muros.
Sem possuir uma moradia própria, ela retornou a casa de seus pais, e, para sua surpresa foi bem recebida por sua mãe e irmãos. Não fosse pela perspicaz capacidade intelectual da jovem, um tanto incomum para uma súdita de classe baixa, essa mentira ainda perpetuaria. Era obvio para Rhoda que sua estadia naquela casa se assegurava única e exclusivamente pela obrigação com o divino que os pais têm para com os seus filhos, independente do quanto os mesmo se banham nas águas do pecado. A melancolia do dia a dia a consumia, a maltratava, esfregava em sua face que não pertencia mais aquele lugar. A terra já não a merecia, não a queria. A sua existência sobre ela não fazia muito mais sentido do que a daquela flutuava em algum lugar acima das nuvens.
Após uma longa manhã chuvosa, sem suportar o ar escuro e opressor do seu pequeno quarto, Rhoda saiu de casa e caminhar pelas ruas. A cidade estava um tanto diferente da época em que foi presa. As praças e centros eram agora tomadas por grupos de jovens que faziam uso de poções muito mais poderosas que o vinho. Imoralidade, rebeldia e vestes completamente inadequadas, que caso o Comte Reynoud, o  líder da igreja local, os visse, condenaria cada um ao fogo do inferno, eram a sua bandeira.
  “ Ei, moça! “, gritou um jovem cabeludo de um desses grupos, “ Você tem alguma Coroa de bronze sobrando?”
  “ Pra quê precisam de dinheiro, vocês não trabalham?” Indagou a jovem um tanto incomodada pela maneira que ele se vestia.
  “ Ninguém nessa cidade se atreve a nos dar emprego, são as ordens da igreja. Estão certos que somos uma ameaça para a moral e os bons costumes. Acredita nisso? Como se não fossem eles próprios os responsáveis pela guerra na qual vivemos. Por favor, senhora. Não comemos nada há dias e esta jovem que nos acompanha está gravida.” Disse apontando para uma moça baixa, esta que usava apenas um vestido gasto pelo uso e algumas flores de diversas cores presas ao longo do tecido e também no cabelo, que o acompanhava.
Rhoda procurou nas dobras do vestido, não encontrou moedas, mas desprendeu o broche que repousava na altura dos seios.
  “ Não tenho dinheiro, assim como vocês sou vista com desgraça. Até mesmo pelos membros da minha família, mesmo que tentem de mim esconder. Mas pegue este broche, talvez possam trocar por algo.’’
  “ Muito obrigada!” disse-lhe a jovem. “ Venha nos visitar qualquer dia, gostaria que a criança a conhecesse quando nascer.” E junto ao resto do grupo caminhou até se misturarem novamente na multidão.
Dias conturbados aqueles onde a juventude deturpava a ordem publica, pensou Rhoda. Onde estaria a guarda real? Por onde anda o Comte de Reynoud? Tudo realmente havia mudado em quatro anos. Como tanto pôde mudar em apenas quatro anos? Ela não sabia, muito menos sonhava em dia poder responder. É certo que as questões não paravam de fervilhar em sua mente e soprar em seus ouvidos. Contudo, não era motivo este para parar a caminhada.
O sol ainda tardaria a se pôr, e retornar para o sufocante ambiente familiar era o que menos desejava naquele momento. Lembrou-se, ao passar vagamente os olhos pelo céu, que já era passada a hora sexta e mesmo que seu ânimo não desejasse, ela precisava e deveria comer. Caminhou até uma tenda de alimentos, algo muito comum naquela cidade. Embora o rei e seus conselheiros decretassem que o valor dos produtos deveriam ser iguais dentre todos os vendedores, para assegurar uma eficaz arrecadação de impostos e manter controle sobre o mercado, vez por outra os habitantes conseguiam utilizar do escambo dentro de duas atividades comerciais.
A tenda em questão servia diversos tipos de alimentos, desde pão ressecado até a mais fina carne de cabra, comum apenas nos pratos daqueles pertencentes às famílias nobres. Rhoda aproximou-se e já podia sentir o sabor dos alimentos desfazendo-se em sua boca.
  “ Por favor, senhora. Pode me servir um pedaço de pão ao leite?” Pediu-lhe sem tirar os olhos do alimento que realmente parecia apetitoso.
A vendedora depositou o alimento numa tigela de barro e com um baque a pousou sobre o balcão.
  “ Duas coroas de bronze.” Disse a velha firmemente.
  “ Ah? Du-duas?” Gaguejou quando lembrou-se que não tinha como pagar pela comida. “ Perdão senhora, creio que não tenho como paga-la”
  “ Queres me fazer de idiota menina?” Gritou em resposta, já a puxar a tigela de volta para si.
  “ Deixe a tigela, eu pagarei por ela.” Falou uma voz abafada pela incessante mastigação.
Rhoda voltou-se para uma mulher madura, que devido a idade era ou já havia sido um dia casada.
  “ Obrigada, senhora. Porém, sinto dizer que não tenho com o que retribuir.” 
  “ Não se preocupe quanto a isso. Junte-se a mim. Meu nome é Liz, e a proposito, senhorita, por favor, não sou mais casada.”
  “ Eu sou Rhoda. É um prazer conhece-la... Senhorita.”
Enquanto eram trocadas mais algumas palavras, Rhoda observava as roupas, o cabelo, e construção das frases da recém conhecida.
  “ Você não é daqui, não é?” Perguntou por fim.
  “ Não, estou de viagem.” Sorriu a senhora , agora, senhorita. “ Eu estava insatisfeita com meu casamento, mas não só com isso. Perdi completamente o gosto por tudo na vida que vivia.”
  “ Posso imaginar como se sente...”
  “ Foi então que um velho shaman, você adoraria conhece-lo, me disse para encontrar um equilíbrio na minha alma. O primeiro passo do ritual consiste em me entregar aos meus desejos mais primitivos, e aqui estamos nós.” Levou ate a boca um pedaço de pão banhado em mel, esgotando-se do agradável sabor, como um sedento que bebe um copo de água. “ Como eu sentia falta disso... Não engordar para o casamento é algo que não vale mesmo a pena.”
Rhoda comia lentamente enquanto perdia-se num olhar vago, entregue aos seus pensamentos e conflitos internos.
  “ Mas e você?”
  “ E- eu?” respondeu Rhoda ao ser tragada de volta para a realidade do momento.
  “ Sim, você mesmo. Conte-me sobre você.”
A princípio, Rhoda, não se sentiu confortável o suficiente pra contar sobre sua vida particular para alguém que acabara de conhecer, não que ela normalmente o fizesse com conhecidos. Contudo, tocada pela boa vontade com que aquela mulher a tratara, ela decidiu contar-lhe sobre o perturbado estado emocional que carregava.
  “ Sabe, minha jovem? Recentemente eu aprendi uma palavra nova, ela me deu força para partir nessa minha jornada. Talvez ela a ajude na sua.” Ergueu o lenço para limpar os lábios sujos de mel e farelo de pão. “ Attraverssiamo.” Disse por fim enquanto levantava-se para ir embora.
  “ At-travessiamo...” deixou escapar por entre os lábios. Quando voltou-se novamente para a mulher, esta já havia partido.
 Tão grade foi a surpresa quando, na manhã seguinte, no palanque da praça, um mensageiro informou que, a mando do rei, seus estudiosos projetaram um novo tipo de transporte, um objeto voador movido a ar quente. É certo que, mesmo naquela época, expandir e conquistar novos territórios era o desejo de qualquer governante, ainda mais quando se tratava de alguém tão jovem e inconsequente.
Com os espaços do mapa já tão preenchidos, quem poderia imaginar que algum dia se buscaria conquistar os céus? O homem por trás dessas ordens não poderia gozar de um juízo perfeito. Tomar o território dos deuses para si não poderia atrair mais desgraça do que um rei louco.
O mensageiro continuou a transmitir firmemente para que todos ouvissem suas palavras. Logo seria possível visitar a terra dos céus, contudo, devido a completa segurança na viagem, inicialmente seria enviado aqueles que não fariam falta na sociedade. Estavam convocados qualquer um dos vagabundos locais instalados nas praças e becos, prisioneiros, pegos em adultério, e até mesmo os desprovidos de juízo que se voluntariem para a expedição.
Rhoda não pensou duas vezes ao colocar seu nome na lista. Junto a ela, um jovem também assinava de forma empolgada.
  “ Eu vim das colônias para servir no exercito do rei, mas alguns novos amigos me fizeram mudar de ideia. Isso é bem mais interessante, não acha?”. Indagou ao olhar diretamente para Rhoda. “ Oh, perdão. Chamo-me Claude. Prazer em conhece-la”
  “ O prazer é meu, Claude. Pode chamar-me de Rhoda.” Respondeu-lhe fazendo esforço para sorrir, afim de demonstrar algum interesse. “ Diga-me. Por quê desistiu do exercito para se aventurar no desconhecido?”
  “ Meu pai, desde muito cedo, me ensinou que devemos todos obediência e dever para com o senhor nosso rei. Vim até aqui decidido a servi-lo no campo de batalha. Porém, antes de me alistar conheci um grupo de jovens um tanto estranhos para a realidade de onde vim. Tentavam me vender um broche, que não teria serventia nenhuma para mim, quando decidi me juntar a eles por algum tempo.” Fez sinal para que Rhoda o acompanhasse na caminhada para fora da multidão, e continuou. “ Eles me fizeram enxergar quanta dor e sofrimento essas guerras causam, desde então desisti de lutar portando o estandarte de qualquer reino, não enquanto este promover a morte e a miséria de outros povos.”
  “ É uma bela visão.” Teve de admitir, “ Jamais teria conhecimento destes ideais se não fosse por você.”
  “ Eu também me surpreendi.” Disse Claude. “ Não são só um bando de vagabundos arruaceiros, afinal.”
  “ Não, não são...” Disse Rhoda já se despedindo do futuro companheiro de viagem.
Ao inicio da tarde, decidiu que visitaria a igreja. Embora não fosse uma pessoa nem um pouco religiosa, algo nos grandes vitrais coloridos a atraia. Talvez fosse a forma como a luz se refratava entre os pedaços de os formavam, banhando o interior da grande catedral com uma variedade de cores jamais alcançadas por nenhum pintor que sobre a terra já caminhou. Pelo menos, não sobre esta.
O caminho até  a catedral já era, em tempo passado, confuso para aqueles que não estavam familiarizados com a labirinto escuros e estreitos que as ruas e casas formavam. Para a jovem, que não acompanhou as mudanças nos últimos quatro anos, a tarefa se tornava muito mais desafiadora. As casas iam passando, cobrindo-a com a sombra fria de suas paredes, as ruas levavam-lhe a outras, e um becos a faziam voltar para as mesmas. Como era de se esperar, Rhoda estava perdida.
   “ Boa tarde, minha jovem!” Falou uma voz atrás de si. “ Você parece um pouco perdida. Porque não entra e toma um pouco de chocolate quente? Venha, não se acanhe. É por conta da casa.”
Rhoda virou-se para a voz e se deparou com uma pequena loja de pedra. Por trás do vidro mais transparente que já vira, se encontravam doces um tanto curiosos. Não eram, com certeza, comuns por alí. Ela entrou e sentou-se ao balcão. A jovem dona do lugar, que apresentou-se como Vianne, logo lhe serviu-lhe a melhor bebida que provara em toda vida. Tão rápido quanto o álcool faria consigo, Rhoda estava falando de tudo que a perturbava, e de sua grande vontade de sumir dali, queria poder voar até a terra celeste, e que  talvez lá encontrasse a paz que tanto lhe faltava.
  “ Tenho algo que servirá exatamente pra você”. Disse a jovem Vianne, “ Tome, é o seu favorito.”
Rhoda levou o doce até os lábios, o sabor ela não conseguiu descrever, talvez o mesmo não tivesse sido feito com essa intenção. Mas ela sentiu, sentiu o corpo flutuar e toda a melancolia passar. Por alguns segundos seu espirito ficou em paz, mas aos poucos recaiu sobre o escuro peso de antes.
  “ Do que é feito isso?”. Perguntou Rhoda.
  “ Ele é feito de perdão.”. Disse a vendedora sorrindo. “ Agora vai, é hora de trilhar o teu caminho. Tenho assuntos a tratar com o Comte Raymound e ele acaba de chegar.”
Enquanto Rhoda levantava-se para sair, pôde ouvir o teor daquela conversa. Ao que parecia, o comte, acusava a mulher de abalar seus clientes com palavras profanas e devassidão, pois uma mãe solteira que não se firma em cidade nenhuma na qual se instala, só pode estar trazendo consigo a desgraça daquele que um dia foi expulso das hostes celestes, contaminando as cidades com o cheiro podre do pecado.
É certo que as palavras da mulher não se foram tão facilmente quanto a agradável sensação que acabara de sentir. Sendo ela uma mensageira do inferno, ou não, para Rhoda não fazia diferença. Algo precisava ser feito, ela havia entendido, mas o que seria tal coisa, ela não sabia. Perdão... Por que ela disse que o doce era feito de perdão?, pensava a jovem enquanto caminhava sob o céu alaranjado de cair da tarde. Olhou pra cima e se assustou, a terra celeste parecia muito maior e mais próxima do que nunca esteve.
Com exceção de um ou outra lanterna a base óleo presa numa haste da madeira ao longo de cada rua, a chegada da noite era sempre dura, cobrindo rapidamente toda a cidade com seu manto negro antes mesmo que alguma estrela se atrevesse a brilhar sob ele.
Agora, definitivamente, as ruas não eram seguras. Pessoas roubadas, mortas ou estupradas durante este horário, se faziam de assunto matinal frequentemente, e Rhoda sabia muito bem disso. Correu por entre as ruas e becos, buscando, quase que cegamente, algum lugar onde poderia ficar segura. Pelo menos até descobrir como encontrar o caminho de volta para a sua pequena, porém iluminada, residência.
Avistou, não muito ao longe, uma pequena taberna, outrora completamente descuidada e jogada aos ratos, mas desde que uma bruxa vinda de terras distantes e seus truques apareceram no lugar, não faltava gente para assistir seus espetáculos de magia e adivinhação.
Rhoda adentrou na taberna sentindo de imediato um forte alívio. Embora não fosse tão mais perigoso dentro do que fora, ao menos, sob a luz dos das velas e castiçais, ninguém a atacaria de surpresa vindo de um beco mais escuro. Alguns destes estabelecimentos funcionavam, caso o movimento de fregueses fosse satisfatório, até os primeiros raios do dia. E este parecia ser o caso.
Pouco mais ao fundo do salão, uma pequena porta se abriu deixando escorregar para o palco uma senhora farta, vestindo roupas exóticas para aquela região do mapa.
  “ Ela é mesmo uma bruxa?” Cochichavam alguns. “ Será que ela não vai nos transformar em alguma criatura do pântano?” Diziam outros um pouco mais preocupados.
  “ Alguém viu a minha varinha magica? Eim, Alguém?” questionou ao publico e em seguida apoiou a mão em forma de concha na orelha, como se para ouvir melhor a resposta das pessoas. “ Não consigo ouvir vocês, deve ter algo tapando meu ouvido...”
A bruxa levou os dedos até o ouvido e lentamente retirou de dentro dele algo que parecia um graveto.
  “ Ora, venham só. Aqui estava ela.” Erguendo-a no  ar para que todos vissem em meio aos aplausos.
Em seguida passou uma das mãos ao redor da varinha, e a mesma desdobrou-se um ramo de flores. A plateia foi a loucura entre gritos de empolgação e mais aplausos.
  “ Eu sinto alguém aqui presente está prestes a fazer uma viagem que vai muda-la” Entoou ao repousar dois dedos da mão direita sobre a testa como forma de concentração. “ Sim, eu sinto. Mas antes ela tem algo muito importante para fazer aqui...”
Por um instante Rhoda chegou a pensar que a senhora olhava diretamente para ela, e a ideia a tomou por uma sensação de completo espanto mas logo concluiu que todas as pessoas deveriam sentir-se da mesma forma, e voltou a relaxar.
  “ É impressionante o que Jasmin pode fazer, não é?” Perguntou-lhe a dona do estabelecimento que estava a servir os clientes no balcão.
  “ Impressionante, sim. Mas já vi farsantes por aí melhores do que ela.” Respondeu-lhe Rhoda.
  “ Será?” Riu a mulher, “ Gostaria de alguma coisa?”
  “ Não, muito obrigada. Eu apenas aguardo a noite se ir para encontrar o meu caminho de casa.”
  “ Mas isso vai demorar muito. Por favor, aceite ao menos a bebida. Vamos, pode toma-la” E serviu um pouco de cerveja escura para a jovem.
Ao fundo a bruxa Jasmin continuava a fazer sua apresentação, volta e meia intercalava os números práticos com sua habilidade de adivinhação e previsão. Adivinha detalhes pessoais dos clientes e até chegava a aconselhar outros em decisões que estavam prestes a tomar.
Foi entre os goles de cerveja e o aplausos do público que as palavras na jovem vendedora de Vianne, da viajante Liz, do jovem Claude e agora da bruxa Jasmin, começaram a vagar em seus pensamentos. Poderia ser apenas o álcool, mas Rhoda juraria para sempre que naquela noite as palavras dançaram em frente aos seus olhos, organizando-se de forma que faziam, pela primeira vez, todo o sentido.
Chamou  novamente a dona da taberna e perguntou.
  “ Você conhece o Sr. Burroughs?”
  “ Sim, eu o conheço. Pobre homem.” Respondeu com pesar em sua voz“ Desde que perdeu a mulher e o filho, não sai mais de casa, vive e dorme sobre o próprio lixo e excrementos.”
  “ A senhora saberia me informar onde ele mora?”
  “ Não sei o que quer com ele, minha jovem. Mas lhe darei a informação.”

No dia seguinte Rhoda estava batendo na porta daquele cujo a vida destruíra. Foi para dizer que sentia muito com tudo aquilo, torcendo para que ele tirasse esse peso que a consumia perdoando-a. Contudo, no momento devido em que o mesmo abriu a porta perguntando o que desejava, lhe faltou coragem de faze-lo. Ofereceu ao Sr. Burroughs, por fim, para justificar aquela visita repentina, os serviços como arrumadeira.
Por reconhecer que logo a sua habitação deixaria, se é que já não havia deixado, de apresentar quaisquer condições que pudessem assegurar que algo sobrevivesse ali dentro. E tendo em vista que inicialmente o serviço seria prestado sem custo algum ou compromisso, ele aceitou, permitindo-a adentrar na casa.
Conforme Rhoda limpava e organizava toda a casa, ela percebeu que assim como ela, aquele homem viveu preso e recluso pelos últimos quatro anos, apertando-lhe ainda mais a culpa que sentia. Se lhe faltavam motivos para viver, agora ela encontrara um bastante nobre. Ajudar o viúvo a se reintegrar não apenas na sociedade, mas também em suas condições físicas e emocionais.
As horas se tornaram dias, e os dias tornaram-se semanas. O Sr. Burroughs nunca havia se sentido tão bem desde a morte de sua família. Agora ele comia os chocolates da senhorita Vianne, passeava junto a Rhoda por entre os depravados, ao seu ver, apenas jovens inexperientes que vivam suas vidas nas praças, e até saía para assistir os show de uma bruxa estrangeira numa taberna da cidade. Não demorou muito mais do que isso, e ambos, acusada e vítima estavam ligados por laços muito mais fortes do que uma relação de patrão e empregado permitiria.
A relação não durou muito, pois então Rhoda foi convocada para partir junto aqueles que dariam o primeiro passo na exploração da terra celeste. Ao contar sobre o fato e de sua decisão de partir, ele não suporta a ideia. Pela primeira vez, ele declara os seus sentimentos por ela. Conta como a sua vida não tinha sentido e de como estava infeliz até ela aparecer e reconstruir o seu espirito a muito destroçado.
Jogado aos seus pés, o homem suplica que ela não o deixe. Não agora que estão tão próximos de firmar um compromisso. Ela tão bela e jovem, ele tão mais experiente e com condições de mantê-la. Não havia, do ponto de vista de todos, uma razão para acabar com tudo isso.
Caída novamente da esfera negra do remorso, dessa vez por destroça-lo novamente, Rhoda decide contar a verdade. Disse-lhe que havia sim uma única e grande razão, a de que ela era o responsável pelo acidente que levara embora sua esposa e filho há quatro anos atrás.
Surtado de raiva, o homem se lança sobre a jovem apertando-lhe o pescoço. Porém desiste quando o brilho dos olhos da jovem desaparece e ela começa a perder a consciência. Caída no chão, Rhoda recupera o fôlego e vai embora sem olhar para trás Segue pelas ruas encobertas pelo manto da noite, odiando-se por causar apenas ainda mais dor ao pobre homem, que culpa nenhuma tem.
Na manhã seguinte foi levada, junto ao jovem que conhecera quando se alistou e muitos outros indivíduos, sendo sua grande maioria aqueles vistos como a escória da sociedade, até a base de treinamento para a grande viagem acima das nuvens.
Não muito longe, instalados no monte mais alto das redondezas, o mesmo em que Rhoda avistou pela primeira vez a terra celeste, treinaram ao longo de toda a semana. A jovem aprendeu sobre variantes de temperatura, comportamento dos ventos e deslocamentos mais bruscos de ar, sobre os tipos de nuvens e o mecanismo de funcionamento, embora todos estes conhecimentos foram passados de forma muito rápida e precária.
No dia do lançamento, muitos curiosos espalhavam-se pela campina. Praticamente todos queriam ver, com seus próprios olhos, se os tais balões iriam mesmo voar. E se voassem, quanto tempo levaria até caírem? Certamente, aquele era o evento mais aguardado do ultimo século naquele pedaço da terra.
Em fila única, um à um, os tripulantes embarcaram naquilo que se assemelhava muito a um barco de porte médio, porém, com um grande balão tomado de ar quente preso logo acima da estrutura principal.
  “ É um engano, eu não sou o Bukowski! Eu não sou o Bukowiski!” Gritava um rapaz enquanto era agredido e empurrado pelos guardas para dentro do convés.
Rhoda viu aquilo como apenas um jovem com medo, e pensou que talvez ela também devesse estar assim, e realmente estava. Sentia medo, medo de ter falhado em tudo que já se propôs a fazer, medo de jamais ser aceita onde quer que esteja, medo de continuar viva com toda essa culpa pesando-lhe nos ombros da alma.
O convés ergueu-se no ar, e lentamente foi se movendo para frente. Rhoda olhou para baixo, e viu como tudo parecia pequeno ali de cima, como tudo parecia não ter importância. Avistou a sua frente, mas ainda muito distante, a terra celeste, e sentiu animada. Fechou os olhos e seu espirito começou a flutuar em paz e harmonia, lembrou-se do sabor do chocolate e agora podia descreve-lo. Ele tinha o gosto de voar. E então sussurrou para o vento
  “ Eu me perdoo.” 


                                                                                                - Caio Karoba



sábado, 16 de agosto de 2014

A criação

A Criação.

No inicio o mundo era frio e sem vida.
Solitário, repousava tal qual a longínqua estrela insone,
Dormindo suavemente no silêncio do espaço.

E disse Deus: Que haja a luz!
E assim a luz se fez.
Orgulhosa e altiva como era, difundiu-se em tom elegante,
Refletindo cores de onde outrora apenas haviam trevas.
E Viu Deus que isso era bom.

Do alto, Ele observou.
A matéria iluminada carecia-lhe de jeito e forma,
Seu traço disforme e grosseiro escarrava-lhe a própria face,
Rasgando vorazmente de dentro de seu peito,
O suspiro da perfeição.

E disse Deus: Erguei da terra toda a rocha, e desta faça-se o corpo!
E assim se fez.
Uma pós outra foram sobrepostas por toda a superfície,
Entoando o baque surdo de um sonho já esquecido.
E viu Deus que isso era bom.

Do alto, Ele observou.
As rochas convocadas das profundezas,
Repousavam imóveis e serenas.
Brindando-lhe com um traço solene e circular,
Tal qual foi feita a gota do orvalho.


E disse Deus: Crescei da terra as plantas, e delas faça-se o sustento.
E assim se fez.
Levantaram-se as arvores de todos os tamanhos,
Enroscando suas longas raízes como garras, no interior da terra.
E viu Deus que isso era bom.

Do alto, Ele observou.
O jovem mundo sorria num tom singular,
Esboçando de jeito tímido sua forma arredondada.
Sustentada unicamente em abraço eterno,
Aguardava em silêncio.

E disse Deus: Brotai do solo o oceano, e nele navegarão doze ilhas,
pois destas surgirá a vida.
E assim se fez.
Ergueram-se sobre as aguas tão leve quanto garças,
Deleitando-se com o baile das ondas ao seu redor.
E viu Deus que isso era bom.

Do alto, Ele observou.
As doze porções de terra tomaram pra si a superfície do mar,
Trazendo consigo paz, satisfação e beleza.
Agora existia a vida,
Mas faltava-lhe o movimento.

E disse Deus: Erguei no céu os astros, pois destes se fará o tempo.
E assim se fez.
Separou então o dia da noite,
Em seguida a hora dos segundos.
E viu Deus que isso era bom.

Do alto, Ele observou.
O três astros celestes circulavam o jovem mundo,
Derramando seu brilho sobre as ilhas uma de cada vez.
Presenteando cada uma com o tempo,
E delas recebendo o lugar na existência.

E disse deus: De minha mão dar-lhe-ei a força, pois andarás por tua conta própria.
E assim se fez.
O mundo então começou a girar,
Governando em seu ritmo constante

Os homens, seus deuses e a própria Terra.

                                                                  - Caio Karoba

domingo, 12 de janeiro de 2014

Um conto: O interrogatório.


O interrogatório

Dentre todos os mistérios que vagam a esmo pelo cosmo, talvez a Terra seja o mais obscuro de todos. Abandonada a própria sorte próxima a grande figura brilhante, outrora visto como o próprio Deus, ela abriga criaturas tão pequenas e frágeis, dotadas de quase nenhuma consciência. Tais criaturas não apenas possuem a esplendida capacidade de conjurar sonhos, mas de tornar real seus pesadelos.
  “Acho que ela desmaiou, senhor.”, disse um jovem rapaz com voz e cabeça baixa.
  “Acorde-a!”, Respondeu-lhe com firmeza  e autoridade.
O Jovem caminhou até um tanque de madeira, com o auxilio do balde surrado e desgastado pelo constante uso, ele pegou uma quantidade generosa da água escura e esverdeada pelos fungos que nela germinavam.
  “Ande com isso rapaz, não percamos mais tempo!”, berrou e o olhou-o com um tom de reprovação.
Com os braços trêmulos o jovem derramou por completo o conteúdo do balde sobre a cabeça da moça. Os longos cabelos negros que lhe cobriam o rosto, agora jaziam completamente encharcados e colados junto à pele suja de sua face.
  “Novamente!”, ordenou o homem sem desviar o olhar da jovem por um só segundo.
Desta vez, como quem acorda do sonho da morte, a moça ergueu a cabeça desesperada a procura de ar. O brusco movimento voltou a lhe ferir seus braços calejados e presos, o cheiro do mofo e madeira apodrecida a Fez recordar de onde estava.
  “Vejo que finalmente acordou, senhorita. Com o que sonhava? Vamos, conte pra nós.”
Por entre os fios de cabelos molhados, ela o observou com a respiração ofegante e os olhos a pesar em lagrimas.
  “Ao que parece meu rapaz ”, disse o homem enquanto remexia alguns instrumentos no balcão. “ vamos continuar aqui por mais algum tempo.”
O homem se dirigiu até a pequena lareira escavada na parede fria de pedra, sobre ela, velhas ferramentas repousavam em um sono profundo, aguardando o dia em que voltariam a ser reutilizadas. Com os dedos magros retirou delicadamente uma longa alavanca de ferro do seu local de descanso, logo em seguida mergulhou uma de suas extremidades sob as brilhantes brasas banhadas pelas chamas alaranjadas.
Voltou-se na direção do balcão, onde apanhou um alicate. Diferente dos instrumentos expostos na parede, este se mostrava muito bem cuidado e conservado. “ Queira pende-la as mãos com mais firmeza, sim?”, disse ao olhar o jovem rapaz que não parecia nem um pouco confortável com aquela situação.
Presa à cadeira, a jovem permanecia incorrupta. Os olhos escuros pesavam-lhe no rosto, projetando toda a sua face para baixo. Por entre os lábios ressecados esboçou abafados gemidos enquanto as cordas apertavam ainda mais os braços cobertos de ferimentos e hematomas. 
  “Por que não evita mais sofrimento e confessa por fim o que fez? ” Dirigiu-lhe o homem enquanto se aproximava a pesados passos.
  “Olhe pra mim quando falo com você!”, rugiu olhando-a de cima.
Lentamente ela levantou a cabeça tremula na direção de seu inquisidor.
  “Você nega que nos últimos seis meses trabalhou na propriedade dos Vincent, e que lá cometeu tamanha barbaridade?” Perguntou severamente.
Motivado pela ausência de resposta, homem deu um passo a frente agarrando a unha do opositor esquerdo da prisioneira. “ Você nega ter servido na residência dos Vincent nos últimos 6 meses?” indagou tão lentamente quanto forçava a ferramenta .
Tremendo de dor, a jovem engolia em seco os gemidos quase sempre por mal sucedida. Com um ultimo esforço mais forte a unha fora arrancada do dedo pálido. O sangue quente viajou pelo ar até por fim derramar-se sobre o vestido, que embora sujo e encardido, trazia indícios que no passado fora tão belo quanto sua dona um dia foi.
Dotado de mãos firmes e expressão inabalável, o interrogador já estava por arrancar a quarta unha quando finalmente a mulher gritou desesperada. “ Sim! Eu trabalhei! Eu trabalhei...” e sucumbiu aos suspiros pesados de quem realizou um grande esforço.
  “Muito bem, muito bem. Vejo que estamos no mesmo barco agora.” Disse o com um certo prazer em sua voz. “ Agora fale sobre seu trabalho. O que fazia na residência?” e se virou de volta ao balcão atrás de si.
  “Eu era uma criada, senhor. Apenas isso.”, respondeu a jovem em um tom quase inaudível.
  “Continue!”
  “Nada a mais que isso. Eu limpava, cozinhava, e as vezes cuidava das crianças...”
  “Você não esta sendo sincera minha jovem. Sei que fazia tudo isso, mas sei que também fez algo a mais. Algo proibido talvez?” e se virou deixando a mostra um pesado martelo balançar entre seus dedos.
  “Eu juro senhor, pelo deus cristo e sua mãe que jamais roubei nada.”  Disse em voz falha já por imaginar o  martírio que a aguardava. “ Eu juro...”
  “Eu acredito em suas palavras, mas sabe que não é por isso que estamos aqui.”
Em um movimento rápido e surdo, o martelo desceu impiedosamente sobre a mão direita da prisioneira. Sua cabeça sacudiu violentamente pra todos os lados, movida numa ferocidade capaz de arranca-la fora do corpo. O grito desesperado e estridente, nem de longe fez jus a tamanha dor que lhe afligia. Tão logo o pesado objeto ergueu-se, a pálida mão tornou-se tão escura e inchada quanto a carne podre de um animal morto há dias
  “Por que não falamos agora sobre seus hábitos noturnos? Outras criadas alegam que você as deixava quase todas as noites e que seu destino permanecia um mistério. Aonde esteve todas estas noites?” disse enquanto caminhava lentamente ao redor da acusada.
  “Jamais sai durante a no-noite. Nunca, nun.. nunca.” Respondeu por entre os cruéis afagos da dor.
  “Mentira!”, retrucou levantando-lhe o queixo com o martelo. “ Aonde esteve todas aquelas noites?”
  “Eu nunc...”, foi capaz de dizer antes de ser interrompida pelo pesado abraço desferido contra seu rosto.
  “Eu pergunte aonde você foi!” vociferou contra a face ligeiramente deformada pela fratura do osso e comprimida pelo inchaço que já se formava.
De cabeça baixa, as únicas palavras que conseguia lembrar chegavam aos lábios umedecidas pelo sangue ainda quente que agora deslizava ao longo do pescoço e seios.
  “Flo-floresta... Eu... ” Falou quase desfalecida.
  “O que fazia na floresta no meio da noite, creio que conhece o perigo de andar por aí sozinha no escuro, não? ” Perguntou o homem já um tanto satisfeito com o progresso.
  “Ervas, eu procurava por ervas.”
  “Para qual finalidade? ”
  “Remédios, eu-eu fazia remédio com elas.”
O homem caminhou com um ar intrigante pela sala, e por fim perguntou:
  “Como e para quem?”
  “O meu filho senhor, ele nasceu muito doente... Para que não fosse sacrificado por invalidez eu o escondi na mata e lá cuido dele.”
  “E onde aprendeu a usar o poder das ervas ao seu bel-prazer?” Perguntou um tanto curioso.
  “Um, um livro...” Disse a jovem após alguns instantes de silêncio.
O homem soltou uma gargalhada, incitando que outros presentes também o acompanhassem.
  “Um livro?”, riu novamente. “O que quer uma criada com um livro? Vai dizer agora que aprendeu a ler com as plantas e animais?”
O som das vozes e risadas atravessavam como eco os ouvidos da jovem, a forte pressão do inchaço no rosto a impedia de abrir totalmente os olhos. Sua respiração tornava-se cada vez mais fraca e espaçada mergulhando-a novamente na escuridão de sua mente.
                           
                                                     ***

  “Acorde-a!”
Mais uma vez, completamente suja e encharcada, ela estava de volta ao interrogatório. Olhou com dificuldade em volta, tudo parecia como antes, exceto ela mesma. Sobre sua cabeça, um tipo de capacete composto por hastes de ferro repousava suavemente.
  “Rapaz, faça o favor.”, disse o homem ao estender a mão na direção do utensílio.
Como um cachorro treinado, o jovem se moveu rapidamente para trás da prisioneira, e tão logo a girar a pequena alavanca. Lentamente as hastes começaram a se mover pressionando um aro muito bem encaixado na cabeça da jovem.
Sentindo o metal frio apertar cada vez mais seus pensamentos, a mulher sacudiu-se em desespero.
  “Ahhh, não. Eu já falei tudo, por favor não!”
  “Sabemos que sim, mas ainda nos falta um pouco mais.” Falou tranquilamente. “ Aperte!”
A jovem rugiu de dor, revirando os olhos e retorcendo os dedos que ainda se moviam, ela gritava, pedia e jurava para que aquele sofrimento acabasse.
  “Já chega!”
Tão lentamente quanto apertaram, as hastes agora afrouxavam-se ao redor do crânio. Na testa da jovem era possível ver claramente a depressão escurecida pelo sangue preso que assinava em nome da tal brutalidade.
  “Os homens que trabalham na fazenda alegam que muitos animais desapareceram ou morreram de forma misteriosa desde que passou a trabalhar na residência. Está ciente disso?”
  “Sim senhor, todos souberam destes eventos. O senhor Milton acredita ter sido obra de algum animal.” Respondeu com a respiração pesada.
  “Ele chegou a comentar que tipo de animal poderia ser?”
  “Não, nunca soube dizer.”
  “Pois eu digo que não foi nenhum animal.” Disse o homem postando-se bem diante da jovem.
Ela levantou os olhos bem de encontro aos deles, durante alguns instantes o absoluto silencio tornou-se ensurdecedor.
  “ Foi você!”
Os olhos da judiada mulher se abriram num repentino espanto mediante a acusação que lhe abatera tão forte o peito.
  “Desde que essa desgraçada entre nós se fez presente,” Levantou a voz para que todos no recinto o ouvissem claramente. “ Não só os Vincent, mas também outros proprietários notaram eventos estranhos. Desde a morte de animais até uma seca repentina de plantações. Poços de água podre e uma peste maldita assolando quem quer que ande sobre a terra!”
Murmúrios em concordância tomaram o ar a sua volta, satisfeito com a aprovação ele continuou.
  “Todas as calamidades tiveram inicio quando esta desconhecida chegou à cidade, pelo que soube ninguém a conhecia, nem mesmo já  se ouviu falar de sua família. Além disso ela alegou perante vossos olhos que possui um filho mesmo não sendo casada. Com todo respeitos aos senhores, mas esta não passa de uma fornicadora condenada ao inferno, e por onde quer que passe arrastará consigo a desgraça!”
Ele caminhou ligeiramente de volta a lareira de onde retirou a longa alavanca, esta agora gozava de uma extremidade tão brilhante e quente quanto o próprio fogo do inferno. Lentamente aproximou-a do olho direito da mulher, que a essa altura já havia chorado rios inteiros de água salgada.
  “Diga quem é você e de onde veio. Diga!”, gritou ao aproximar ainda mais o ferro em brasa.
O medo não a permitiu falar uma só palavra até que a luz beijasse seu olho. O grito estridente fez tremer as paredes e ensurdeceu os ouvidos de todas as almas que em seu plano carnal se faziam presentes.
O súbito barulho entoado pelas inúmeras vozes berrando e gritando ao mesmo tempo, foi cessado imediatamente com uma forte pancada na porta. Por ela entrou um homem de baixa estatura e rosto assustado, sua roupa suja e surrada indicava que havia andando por terreno difícil e coberto por vegetação. Há passos lagos e um pouco ofegante aproximou-se da autoridade vigente.
  “Vasculhamos a floresta, senhor.” Disse ao retirar o chapéu em respeito e pousa-lo sobre o braço.
  “E o que encontraram?”, Perguntou o homem demonstrando muito interesse.
  “Uma criança disforme. As mulheres mal aguentam olhar em sua direção, muito menos diretamente para sua face. Gritam e amaldiçoam-na como o filho do demônio.”
A jovem continuava a se mover inquieta pela dor que a assombrava, forçando os braços amarrados na esperança de conseguir solta-los.
  “Acharam mais alguma coisa?”
  “Um dos volumes proibidos do Alh’ha  Debuh.”
O homem fechou os olhos com muito pesar, suas sobrancelhas brancas pareciam querer se tocar enquanto pesadas gotas de suor escorriam pela sua rala barba. Decidido caminhou de volta até a moça, que relutava para se livrar das amarras. Curvou-se lentamente até ficar cara à cara com aquele rosto triste, e agora desfigurado.
  “Eu sei quem você é...”, disse olhando na escuridão de seu único  olho ainda aberto . “ Bruxa!”
Vozes de espanto e acusação ecoaram por entre as frias paredes de pedra. Dois homens altos trajando roupas de guarda aproximaram-se pesadamente da mulher, que agora sacudia-se violentamente em desespero, e imóveis aguardaram ordens.
  “Queimem-na!”, Falou por fim num tom seco.
Os soltados desamarraram a condenada e só com muita brutalidade a mantiveram sob controle.
  “Ahhhh, Não! Por tudo que há de mais sagrado, senhor! Eu não sou bruxa, eu não sou!”, gritava e rugia desesperadamente a ponto de romper os limites de sua voz.
Enquanto era arrastada pra fora alguns dos presentes na sala se benziam, outros lhe amaldiçoavam com fortes agressões na cabeça e estômago, ou apenas se limitavam a cuspir-lhe a face.
  “Esta já é a terceira condenada esta semana, padre.” Disse o jovem rapaz ao se aproximar do cansado inquisidor. “ Acha que encontraremos mais alguma?”
Ele calmamente retirou um lenço do bolso e enxugou o suor do rosto, olhou em direção ao jovem lamentando que ele tivera sido obrigado a presenciar o tamanho horror daquela noite.
  “Eu começo a pensar, meu bom rapaz, que bruxas não existem.”

                                                                                - Caio Karoba