segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Texto reaproveitado de um trabalho proposto numa aula de antropologia. ( Sem revisão)


Para todos os alunos foram exigidos que assistissem à cinco filmes: Comer, rezar, amar; A outra terra; Bagdad Café; Hair - o musical; Chocolate. A atividade consistiu em utilizar os elementos e personagens dos cinco filmes em um roteiro totalmente novo e único. Abaixo segue o texto que fico feliz de ter conseguido fazer no tão pouco tempo que nos foi dado.



                                       Another city

O astro responsável por definir aquilo que conveniou-se chamar de dia e noite, se mostrava quase no ponto mais alto. Seus raios, porém, transpassavam as juntas barras de ferro, espalhando o ar morno sobre a pele pálida de um rosto adormecido.
  “ Levante-se! ” Gritou o guarda batendo contra a grade. “ É chegado o dia de tua liberdade. Ou preferes ficar por mais quatro anos?”
Rhoda acordou. Ofuscada, não pelo sol que já corava sua pele clara, mas pelas lembranças anteriores a sua condenação. Lembrava-se muito bem da noite em que os astrônomos do rei admitiram, perante uma grande praça lotada de corpos curiosos, o vislumbre da terra celeste. Assim foi chamada aquilo, que na época apenas se foi possível observar através de das lentes poderosas que dispunham esses estudiosos.
Encantada com a noticia, Rhoda subiu até o monte mais alto que conhecia. De lá, ao cair da tarde, pôde ver a minúscula silhueta estampada ao longe no céu alaranjado. Ponto este que passaria facilmente despercebido caso ela mesma não soubesse o que procurava. A noite caiu, e junto a ela, Rhoda e sua carroça puseram-se a descer pelo sinuoso caminho. Talvez por desleixe ou pura ação do destino, a moça errou o caminho. O terreno acidentado fez o desgastado cavalo tropeçar e perder o controle. Carroça, mulher e animal rolaram morro abaixo.
Ao recobrar a consciência e levantar-se com dificuldade em meio a uma grande quantidade de ferimentos e pedaços de carroça e animais e espalhados, ela pôde vislumbrar o cenário em que se encontrava. Sua carroça havia caído sobre outra e duas vidas humanas ceifado. Agora eram apenas uma jovem, que no mais tardar seria condenada pela Lei do homem e de Deus, e o recém viúvo que jazia desacordado, que caso acordado estivesse, cairia aos prantos da loucura ao ver os cadáveres da esposa e filho estirados em meio aos destroços..
Quatro anos depois estava Rhoda sendo levada para fora de sua prisão. Embora este, para a maioria das pessoas, fosse o momento ideal para tentar um recomeço, para a jovem, era apenas uma extensão de sua punição. Observada por todos com desgraça e repulsa, ela não tinha mais espaço dentro daqueles muros.
Sem possuir uma moradia própria, ela retornou a casa de seus pais, e, para sua surpresa foi bem recebida por sua mãe e irmãos. Não fosse pela perspicaz capacidade intelectual da jovem, um tanto incomum para uma súdita de classe baixa, essa mentira ainda perpetuaria. Era obvio para Rhoda que sua estadia naquela casa se assegurava única e exclusivamente pela obrigação com o divino que os pais têm para com os seus filhos, independente do quanto os mesmo se banham nas águas do pecado. A melancolia do dia a dia a consumia, a maltratava, esfregava em sua face que não pertencia mais aquele lugar. A terra já não a merecia, não a queria. A sua existência sobre ela não fazia muito mais sentido do que a daquela flutuava em algum lugar acima das nuvens.
Após uma longa manhã chuvosa, sem suportar o ar escuro e opressor do seu pequeno quarto, Rhoda saiu de casa e caminhar pelas ruas. A cidade estava um tanto diferente da época em que foi presa. As praças e centros eram agora tomadas por grupos de jovens que faziam uso de poções muito mais poderosas que o vinho. Imoralidade, rebeldia e vestes completamente inadequadas, que caso o Comte Reynoud, o  líder da igreja local, os visse, condenaria cada um ao fogo do inferno, eram a sua bandeira.
  “ Ei, moça! “, gritou um jovem cabeludo de um desses grupos, “ Você tem alguma Coroa de bronze sobrando?”
  “ Pra quê precisam de dinheiro, vocês não trabalham?” Indagou a jovem um tanto incomodada pela maneira que ele se vestia.
  “ Ninguém nessa cidade se atreve a nos dar emprego, são as ordens da igreja. Estão certos que somos uma ameaça para a moral e os bons costumes. Acredita nisso? Como se não fossem eles próprios os responsáveis pela guerra na qual vivemos. Por favor, senhora. Não comemos nada há dias e esta jovem que nos acompanha está gravida.” Disse apontando para uma moça baixa, esta que usava apenas um vestido gasto pelo uso e algumas flores de diversas cores presas ao longo do tecido e também no cabelo, que o acompanhava.
Rhoda procurou nas dobras do vestido, não encontrou moedas, mas desprendeu o broche que repousava na altura dos seios.
  “ Não tenho dinheiro, assim como vocês sou vista com desgraça. Até mesmo pelos membros da minha família, mesmo que tentem de mim esconder. Mas pegue este broche, talvez possam trocar por algo.’’
  “ Muito obrigada!” disse-lhe a jovem. “ Venha nos visitar qualquer dia, gostaria que a criança a conhecesse quando nascer.” E junto ao resto do grupo caminhou até se misturarem novamente na multidão.
Dias conturbados aqueles onde a juventude deturpava a ordem publica, pensou Rhoda. Onde estaria a guarda real? Por onde anda o Comte de Reynoud? Tudo realmente havia mudado em quatro anos. Como tanto pôde mudar em apenas quatro anos? Ela não sabia, muito menos sonhava em dia poder responder. É certo que as questões não paravam de fervilhar em sua mente e soprar em seus ouvidos. Contudo, não era motivo este para parar a caminhada.
O sol ainda tardaria a se pôr, e retornar para o sufocante ambiente familiar era o que menos desejava naquele momento. Lembrou-se, ao passar vagamente os olhos pelo céu, que já era passada a hora sexta e mesmo que seu ânimo não desejasse, ela precisava e deveria comer. Caminhou até uma tenda de alimentos, algo muito comum naquela cidade. Embora o rei e seus conselheiros decretassem que o valor dos produtos deveriam ser iguais dentre todos os vendedores, para assegurar uma eficaz arrecadação de impostos e manter controle sobre o mercado, vez por outra os habitantes conseguiam utilizar do escambo dentro de duas atividades comerciais.
A tenda em questão servia diversos tipos de alimentos, desde pão ressecado até a mais fina carne de cabra, comum apenas nos pratos daqueles pertencentes às famílias nobres. Rhoda aproximou-se e já podia sentir o sabor dos alimentos desfazendo-se em sua boca.
  “ Por favor, senhora. Pode me servir um pedaço de pão ao leite?” Pediu-lhe sem tirar os olhos do alimento que realmente parecia apetitoso.
A vendedora depositou o alimento numa tigela de barro e com um baque a pousou sobre o balcão.
  “ Duas coroas de bronze.” Disse a velha firmemente.
  “ Ah? Du-duas?” Gaguejou quando lembrou-se que não tinha como pagar pela comida. “ Perdão senhora, creio que não tenho como paga-la”
  “ Queres me fazer de idiota menina?” Gritou em resposta, já a puxar a tigela de volta para si.
  “ Deixe a tigela, eu pagarei por ela.” Falou uma voz abafada pela incessante mastigação.
Rhoda voltou-se para uma mulher madura, que devido a idade era ou já havia sido um dia casada.
  “ Obrigada, senhora. Porém, sinto dizer que não tenho com o que retribuir.” 
  “ Não se preocupe quanto a isso. Junte-se a mim. Meu nome é Liz, e a proposito, senhorita, por favor, não sou mais casada.”
  “ Eu sou Rhoda. É um prazer conhece-la... Senhorita.”
Enquanto eram trocadas mais algumas palavras, Rhoda observava as roupas, o cabelo, e construção das frases da recém conhecida.
  “ Você não é daqui, não é?” Perguntou por fim.
  “ Não, estou de viagem.” Sorriu a senhora , agora, senhorita. “ Eu estava insatisfeita com meu casamento, mas não só com isso. Perdi completamente o gosto por tudo na vida que vivia.”
  “ Posso imaginar como se sente...”
  “ Foi então que um velho shaman, você adoraria conhece-lo, me disse para encontrar um equilíbrio na minha alma. O primeiro passo do ritual consiste em me entregar aos meus desejos mais primitivos, e aqui estamos nós.” Levou ate a boca um pedaço de pão banhado em mel, esgotando-se do agradável sabor, como um sedento que bebe um copo de água. “ Como eu sentia falta disso... Não engordar para o casamento é algo que não vale mesmo a pena.”
Rhoda comia lentamente enquanto perdia-se num olhar vago, entregue aos seus pensamentos e conflitos internos.
  “ Mas e você?”
  “ E- eu?” respondeu Rhoda ao ser tragada de volta para a realidade do momento.
  “ Sim, você mesmo. Conte-me sobre você.”
A princípio, Rhoda, não se sentiu confortável o suficiente pra contar sobre sua vida particular para alguém que acabara de conhecer, não que ela normalmente o fizesse com conhecidos. Contudo, tocada pela boa vontade com que aquela mulher a tratara, ela decidiu contar-lhe sobre o perturbado estado emocional que carregava.
  “ Sabe, minha jovem? Recentemente eu aprendi uma palavra nova, ela me deu força para partir nessa minha jornada. Talvez ela a ajude na sua.” Ergueu o lenço para limpar os lábios sujos de mel e farelo de pão. “ Attraverssiamo.” Disse por fim enquanto levantava-se para ir embora.
  “ At-travessiamo...” deixou escapar por entre os lábios. Quando voltou-se novamente para a mulher, esta já havia partido.
 Tão grade foi a surpresa quando, na manhã seguinte, no palanque da praça, um mensageiro informou que, a mando do rei, seus estudiosos projetaram um novo tipo de transporte, um objeto voador movido a ar quente. É certo que, mesmo naquela época, expandir e conquistar novos territórios era o desejo de qualquer governante, ainda mais quando se tratava de alguém tão jovem e inconsequente.
Com os espaços do mapa já tão preenchidos, quem poderia imaginar que algum dia se buscaria conquistar os céus? O homem por trás dessas ordens não poderia gozar de um juízo perfeito. Tomar o território dos deuses para si não poderia atrair mais desgraça do que um rei louco.
O mensageiro continuou a transmitir firmemente para que todos ouvissem suas palavras. Logo seria possível visitar a terra dos céus, contudo, devido a completa segurança na viagem, inicialmente seria enviado aqueles que não fariam falta na sociedade. Estavam convocados qualquer um dos vagabundos locais instalados nas praças e becos, prisioneiros, pegos em adultério, e até mesmo os desprovidos de juízo que se voluntariem para a expedição.
Rhoda não pensou duas vezes ao colocar seu nome na lista. Junto a ela, um jovem também assinava de forma empolgada.
  “ Eu vim das colônias para servir no exercito do rei, mas alguns novos amigos me fizeram mudar de ideia. Isso é bem mais interessante, não acha?”. Indagou ao olhar diretamente para Rhoda. “ Oh, perdão. Chamo-me Claude. Prazer em conhece-la”
  “ O prazer é meu, Claude. Pode chamar-me de Rhoda.” Respondeu-lhe fazendo esforço para sorrir, afim de demonstrar algum interesse. “ Diga-me. Por quê desistiu do exercito para se aventurar no desconhecido?”
  “ Meu pai, desde muito cedo, me ensinou que devemos todos obediência e dever para com o senhor nosso rei. Vim até aqui decidido a servi-lo no campo de batalha. Porém, antes de me alistar conheci um grupo de jovens um tanto estranhos para a realidade de onde vim. Tentavam me vender um broche, que não teria serventia nenhuma para mim, quando decidi me juntar a eles por algum tempo.” Fez sinal para que Rhoda o acompanhasse na caminhada para fora da multidão, e continuou. “ Eles me fizeram enxergar quanta dor e sofrimento essas guerras causam, desde então desisti de lutar portando o estandarte de qualquer reino, não enquanto este promover a morte e a miséria de outros povos.”
  “ É uma bela visão.” Teve de admitir, “ Jamais teria conhecimento destes ideais se não fosse por você.”
  “ Eu também me surpreendi.” Disse Claude. “ Não são só um bando de vagabundos arruaceiros, afinal.”
  “ Não, não são...” Disse Rhoda já se despedindo do futuro companheiro de viagem.
Ao inicio da tarde, decidiu que visitaria a igreja. Embora não fosse uma pessoa nem um pouco religiosa, algo nos grandes vitrais coloridos a atraia. Talvez fosse a forma como a luz se refratava entre os pedaços de os formavam, banhando o interior da grande catedral com uma variedade de cores jamais alcançadas por nenhum pintor que sobre a terra já caminhou. Pelo menos, não sobre esta.
O caminho até  a catedral já era, em tempo passado, confuso para aqueles que não estavam familiarizados com a labirinto escuros e estreitos que as ruas e casas formavam. Para a jovem, que não acompanhou as mudanças nos últimos quatro anos, a tarefa se tornava muito mais desafiadora. As casas iam passando, cobrindo-a com a sombra fria de suas paredes, as ruas levavam-lhe a outras, e um becos a faziam voltar para as mesmas. Como era de se esperar, Rhoda estava perdida.
   “ Boa tarde, minha jovem!” Falou uma voz atrás de si. “ Você parece um pouco perdida. Porque não entra e toma um pouco de chocolate quente? Venha, não se acanhe. É por conta da casa.”
Rhoda virou-se para a voz e se deparou com uma pequena loja de pedra. Por trás do vidro mais transparente que já vira, se encontravam doces um tanto curiosos. Não eram, com certeza, comuns por alí. Ela entrou e sentou-se ao balcão. A jovem dona do lugar, que apresentou-se como Vianne, logo lhe serviu-lhe a melhor bebida que provara em toda vida. Tão rápido quanto o álcool faria consigo, Rhoda estava falando de tudo que a perturbava, e de sua grande vontade de sumir dali, queria poder voar até a terra celeste, e que  talvez lá encontrasse a paz que tanto lhe faltava.
  “ Tenho algo que servirá exatamente pra você”. Disse a jovem Vianne, “ Tome, é o seu favorito.”
Rhoda levou o doce até os lábios, o sabor ela não conseguiu descrever, talvez o mesmo não tivesse sido feito com essa intenção. Mas ela sentiu, sentiu o corpo flutuar e toda a melancolia passar. Por alguns segundos seu espirito ficou em paz, mas aos poucos recaiu sobre o escuro peso de antes.
  “ Do que é feito isso?”. Perguntou Rhoda.
  “ Ele é feito de perdão.”. Disse a vendedora sorrindo. “ Agora vai, é hora de trilhar o teu caminho. Tenho assuntos a tratar com o Comte Raymound e ele acaba de chegar.”
Enquanto Rhoda levantava-se para sair, pôde ouvir o teor daquela conversa. Ao que parecia, o comte, acusava a mulher de abalar seus clientes com palavras profanas e devassidão, pois uma mãe solteira que não se firma em cidade nenhuma na qual se instala, só pode estar trazendo consigo a desgraça daquele que um dia foi expulso das hostes celestes, contaminando as cidades com o cheiro podre do pecado.
É certo que as palavras da mulher não se foram tão facilmente quanto a agradável sensação que acabara de sentir. Sendo ela uma mensageira do inferno, ou não, para Rhoda não fazia diferença. Algo precisava ser feito, ela havia entendido, mas o que seria tal coisa, ela não sabia. Perdão... Por que ela disse que o doce era feito de perdão?, pensava a jovem enquanto caminhava sob o céu alaranjado de cair da tarde. Olhou pra cima e se assustou, a terra celeste parecia muito maior e mais próxima do que nunca esteve.
Com exceção de um ou outra lanterna a base óleo presa numa haste da madeira ao longo de cada rua, a chegada da noite era sempre dura, cobrindo rapidamente toda a cidade com seu manto negro antes mesmo que alguma estrela se atrevesse a brilhar sob ele.
Agora, definitivamente, as ruas não eram seguras. Pessoas roubadas, mortas ou estupradas durante este horário, se faziam de assunto matinal frequentemente, e Rhoda sabia muito bem disso. Correu por entre as ruas e becos, buscando, quase que cegamente, algum lugar onde poderia ficar segura. Pelo menos até descobrir como encontrar o caminho de volta para a sua pequena, porém iluminada, residência.
Avistou, não muito ao longe, uma pequena taberna, outrora completamente descuidada e jogada aos ratos, mas desde que uma bruxa vinda de terras distantes e seus truques apareceram no lugar, não faltava gente para assistir seus espetáculos de magia e adivinhação.
Rhoda adentrou na taberna sentindo de imediato um forte alívio. Embora não fosse tão mais perigoso dentro do que fora, ao menos, sob a luz dos das velas e castiçais, ninguém a atacaria de surpresa vindo de um beco mais escuro. Alguns destes estabelecimentos funcionavam, caso o movimento de fregueses fosse satisfatório, até os primeiros raios do dia. E este parecia ser o caso.
Pouco mais ao fundo do salão, uma pequena porta se abriu deixando escorregar para o palco uma senhora farta, vestindo roupas exóticas para aquela região do mapa.
  “ Ela é mesmo uma bruxa?” Cochichavam alguns. “ Será que ela não vai nos transformar em alguma criatura do pântano?” Diziam outros um pouco mais preocupados.
  “ Alguém viu a minha varinha magica? Eim, Alguém?” questionou ao publico e em seguida apoiou a mão em forma de concha na orelha, como se para ouvir melhor a resposta das pessoas. “ Não consigo ouvir vocês, deve ter algo tapando meu ouvido...”
A bruxa levou os dedos até o ouvido e lentamente retirou de dentro dele algo que parecia um graveto.
  “ Ora, venham só. Aqui estava ela.” Erguendo-a no  ar para que todos vissem em meio aos aplausos.
Em seguida passou uma das mãos ao redor da varinha, e a mesma desdobrou-se um ramo de flores. A plateia foi a loucura entre gritos de empolgação e mais aplausos.
  “ Eu sinto alguém aqui presente está prestes a fazer uma viagem que vai muda-la” Entoou ao repousar dois dedos da mão direita sobre a testa como forma de concentração. “ Sim, eu sinto. Mas antes ela tem algo muito importante para fazer aqui...”
Por um instante Rhoda chegou a pensar que a senhora olhava diretamente para ela, e a ideia a tomou por uma sensação de completo espanto mas logo concluiu que todas as pessoas deveriam sentir-se da mesma forma, e voltou a relaxar.
  “ É impressionante o que Jasmin pode fazer, não é?” Perguntou-lhe a dona do estabelecimento que estava a servir os clientes no balcão.
  “ Impressionante, sim. Mas já vi farsantes por aí melhores do que ela.” Respondeu-lhe Rhoda.
  “ Será?” Riu a mulher, “ Gostaria de alguma coisa?”
  “ Não, muito obrigada. Eu apenas aguardo a noite se ir para encontrar o meu caminho de casa.”
  “ Mas isso vai demorar muito. Por favor, aceite ao menos a bebida. Vamos, pode toma-la” E serviu um pouco de cerveja escura para a jovem.
Ao fundo a bruxa Jasmin continuava a fazer sua apresentação, volta e meia intercalava os números práticos com sua habilidade de adivinhação e previsão. Adivinha detalhes pessoais dos clientes e até chegava a aconselhar outros em decisões que estavam prestes a tomar.
Foi entre os goles de cerveja e o aplausos do público que as palavras na jovem vendedora de Vianne, da viajante Liz, do jovem Claude e agora da bruxa Jasmin, começaram a vagar em seus pensamentos. Poderia ser apenas o álcool, mas Rhoda juraria para sempre que naquela noite as palavras dançaram em frente aos seus olhos, organizando-se de forma que faziam, pela primeira vez, todo o sentido.
Chamou  novamente a dona da taberna e perguntou.
  “ Você conhece o Sr. Burroughs?”
  “ Sim, eu o conheço. Pobre homem.” Respondeu com pesar em sua voz“ Desde que perdeu a mulher e o filho, não sai mais de casa, vive e dorme sobre o próprio lixo e excrementos.”
  “ A senhora saberia me informar onde ele mora?”
  “ Não sei o que quer com ele, minha jovem. Mas lhe darei a informação.”

No dia seguinte Rhoda estava batendo na porta daquele cujo a vida destruíra. Foi para dizer que sentia muito com tudo aquilo, torcendo para que ele tirasse esse peso que a consumia perdoando-a. Contudo, no momento devido em que o mesmo abriu a porta perguntando o que desejava, lhe faltou coragem de faze-lo. Ofereceu ao Sr. Burroughs, por fim, para justificar aquela visita repentina, os serviços como arrumadeira.
Por reconhecer que logo a sua habitação deixaria, se é que já não havia deixado, de apresentar quaisquer condições que pudessem assegurar que algo sobrevivesse ali dentro. E tendo em vista que inicialmente o serviço seria prestado sem custo algum ou compromisso, ele aceitou, permitindo-a adentrar na casa.
Conforme Rhoda limpava e organizava toda a casa, ela percebeu que assim como ela, aquele homem viveu preso e recluso pelos últimos quatro anos, apertando-lhe ainda mais a culpa que sentia. Se lhe faltavam motivos para viver, agora ela encontrara um bastante nobre. Ajudar o viúvo a se reintegrar não apenas na sociedade, mas também em suas condições físicas e emocionais.
As horas se tornaram dias, e os dias tornaram-se semanas. O Sr. Burroughs nunca havia se sentido tão bem desde a morte de sua família. Agora ele comia os chocolates da senhorita Vianne, passeava junto a Rhoda por entre os depravados, ao seu ver, apenas jovens inexperientes que vivam suas vidas nas praças, e até saía para assistir os show de uma bruxa estrangeira numa taberna da cidade. Não demorou muito mais do que isso, e ambos, acusada e vítima estavam ligados por laços muito mais fortes do que uma relação de patrão e empregado permitiria.
A relação não durou muito, pois então Rhoda foi convocada para partir junto aqueles que dariam o primeiro passo na exploração da terra celeste. Ao contar sobre o fato e de sua decisão de partir, ele não suporta a ideia. Pela primeira vez, ele declara os seus sentimentos por ela. Conta como a sua vida não tinha sentido e de como estava infeliz até ela aparecer e reconstruir o seu espirito a muito destroçado.
Jogado aos seus pés, o homem suplica que ela não o deixe. Não agora que estão tão próximos de firmar um compromisso. Ela tão bela e jovem, ele tão mais experiente e com condições de mantê-la. Não havia, do ponto de vista de todos, uma razão para acabar com tudo isso.
Caída novamente da esfera negra do remorso, dessa vez por destroça-lo novamente, Rhoda decide contar a verdade. Disse-lhe que havia sim uma única e grande razão, a de que ela era o responsável pelo acidente que levara embora sua esposa e filho há quatro anos atrás.
Surtado de raiva, o homem se lança sobre a jovem apertando-lhe o pescoço. Porém desiste quando o brilho dos olhos da jovem desaparece e ela começa a perder a consciência. Caída no chão, Rhoda recupera o fôlego e vai embora sem olhar para trás Segue pelas ruas encobertas pelo manto da noite, odiando-se por causar apenas ainda mais dor ao pobre homem, que culpa nenhuma tem.
Na manhã seguinte foi levada, junto ao jovem que conhecera quando se alistou e muitos outros indivíduos, sendo sua grande maioria aqueles vistos como a escória da sociedade, até a base de treinamento para a grande viagem acima das nuvens.
Não muito longe, instalados no monte mais alto das redondezas, o mesmo em que Rhoda avistou pela primeira vez a terra celeste, treinaram ao longo de toda a semana. A jovem aprendeu sobre variantes de temperatura, comportamento dos ventos e deslocamentos mais bruscos de ar, sobre os tipos de nuvens e o mecanismo de funcionamento, embora todos estes conhecimentos foram passados de forma muito rápida e precária.
No dia do lançamento, muitos curiosos espalhavam-se pela campina. Praticamente todos queriam ver, com seus próprios olhos, se os tais balões iriam mesmo voar. E se voassem, quanto tempo levaria até caírem? Certamente, aquele era o evento mais aguardado do ultimo século naquele pedaço da terra.
Em fila única, um à um, os tripulantes embarcaram naquilo que se assemelhava muito a um barco de porte médio, porém, com um grande balão tomado de ar quente preso logo acima da estrutura principal.
  “ É um engano, eu não sou o Bukowski! Eu não sou o Bukowiski!” Gritava um rapaz enquanto era agredido e empurrado pelos guardas para dentro do convés.
Rhoda viu aquilo como apenas um jovem com medo, e pensou que talvez ela também devesse estar assim, e realmente estava. Sentia medo, medo de ter falhado em tudo que já se propôs a fazer, medo de jamais ser aceita onde quer que esteja, medo de continuar viva com toda essa culpa pesando-lhe nos ombros da alma.
O convés ergueu-se no ar, e lentamente foi se movendo para frente. Rhoda olhou para baixo, e viu como tudo parecia pequeno ali de cima, como tudo parecia não ter importância. Avistou a sua frente, mas ainda muito distante, a terra celeste, e sentiu animada. Fechou os olhos e seu espirito começou a flutuar em paz e harmonia, lembrou-se do sabor do chocolate e agora podia descreve-lo. Ele tinha o gosto de voar. E então sussurrou para o vento
  “ Eu me perdoo.” 


                                                                                                - Caio Karoba



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