O
pedido
A
pálida luz da lua, enaltecida pelo espesso véu negro da noite, tecia seus
braços luminosos tocando agora a superfície de um mundo ainda jovem, e como
tal, completamente tomado pelo delírio de ser, vagando, perdido, por entre as
próprias fantasias.
O
longo e silencioso suspiro das arvores fora quebrado conforme pesadas botas de
couro deformavam o solo logo abaixo de si. Uma respiração ofegante roubava-lhe
a vez da fala, ocupando todo o ar que dançava friamente ao seu redor. A tensão,
denunciada pelas gotas de suor que escorriam lentamente sob a pele, crescia a
cada passo dado em direção ao destino traçado entre as paginas amareladas de um
antigo exemplar, envolto em uma grossa camada de pano, repousado sob o braço. Embora
antigo e maltratado pelo tempo, trazia ainda consigo a beleza que tivera no dia
em que fora escrito. Sua capa ornamentada em um couro batido já desgastada e
sem brilho, não deixava a restar duvidas de que tal objeto fora moldado por
sobre a mais fina matéria, e perdido em um tempo, que transcendente às
lembranças, havia deixado de existir.
Os
braços e pernas feridos pelo trajeto forçado mata adentro, perpetuavam sua
interminável luta, abrindo caminho por entre os galhos secos e pontudos de uma
mata cada vez mais fechada e densa. Os calçados já completamente subjugados
pela lama, sentiam dificuldade de manter-se num curso constante, resultantes à
dor que agora percorriam os membros inferiores. E em meio ao silencio berrante
da noite, a língua ressecada esfolava o céu da boca, repetindo para si mesma
que agora faltava pouco.
Não
demorou muito mais tempo para que avistasse, por entre os troncos negros, o
reflexo proveniente das águas. Finalmente havia chegado ao seu destino. Exausto
e ofegante, aproximou-se do lago, caindo sobre os joelhos e permitindo que a
fria terra úmida se moldasse ao redor dos dedos de sua mão.
Após
recuperar o fôlego, roubado pela árdua caminhada, repousou o velho livro bem a
sua frente. Correu os dedos por paginas finas, porém muito pesadas, buscando
aquela que era única entre tantas outras iguais. Suavemente fechou-se no escuro
de sua mente, e tão solene quanto o gemido das arvores ao seu redor, começou a entoar
uma prece cada vez mais alto.
“ Aquela que habita o coração negro de todos
que são um ; Mãe da sombra e Rainha das trevas; Diante do pobre servo
aparece-te; Do sangue dele ergue tua força; De sua alma eleva teu espirito; Conceda
a este que lhe serve um suspiro de pedido.”
Abriu
os olhos e correu sua visão pelo cenário que o abraçava, tudo permanecia como
antes, nem mesmo a Dama da noite mostrava, em seu percurso habitual, que o
tempo havia se passado. Sentiu-se decepcionado, porém dignou-se a tentar mais
uma vez, afinal havia chegado até ali e alguma parte do todo merecia, por
excelência de causa, ser real. Dessa vez curvou-se a ponto de sentir a terra
fria beijar sua testa, entoando novamente sua prece, erguendo a voz o mais alto
e encorpada quanto fosse possível para alguém entregue ao estado em que se
encontrava. O vento cortava friamente as árvores que gargalhavam com o balançar
de suas folhas. Se riam de prazer ou de histeria, aquela altura o pobre homem
não sabia dizer.
O
eco das palavras finais dissipou-se do ar, fugindo-lhe ao alcance dos ouvidos.
Lentamente, e já sem esperança, levantou o corpo, e assim também sucedeu-se seus olhos. O susto o fez
cambalear pra trás, caindo sobre a lama escura formada pelo abraço gélido entre
a água do lago e a terra que lhe servia de cálice. Ali, caído e paralisado pelo
medo, emitia um forte grito de pavor, audível apenas ao ouvido daquelas que
outrora foram chamadas de almas.
“ Quem és?” Disse uma voz antiga arrastada,
oriunda de um vento esbranquiçado. “ O que queres vindo até aqui?”
Ainda
tremulo, o homem avistou o livro que agora dormia tranquilamente nos braços
daquela que lhe falava.
“ E-eu..” Tentou responder, mas as palavras
pareciam agarra-se a sua garganta como se temessem ser pronunciadas.
Longos
cabelos brancos ondulavam junto à vestes de mesma cor, dissolvidos num caminhar
elegante, dado para fora da água escura.
“ Quem és, e o que queres aqui?” Indagou a
voz num tom mais forte e imponente.
“ Um.. um lenhador, apenas isso...” Conseguiu
dizer, sem olha-la nos olhos, se é que a coisa também os tinham. “ Vim da Velha
cidade.”
“ Hmm. Então ela ainda existe?”, disse a
entidade como se lembrasse de algo há muito esquecido. “ Vocês são como uma
praga que se alimenta do próprio veneno. Tão persistentes quanto inconvenientes...
Porém, não viverão para sempre.”
Continuou
a aproximar-se devagar. Suas vestes se arrastavam sobre a terra escura, muito
embora parecessem tão limpas e claras quanto às tardes ensolaradas de verão.
“ Onde encontrou esse livro?” Questionou de
forma pesada e acusativa. “ Não deveria homem nenhum tê-lo!”
“ En- encontrei-o. Não o roubei, eu lhe
juro... eu juro.” Respondeu, lutando para olha-la diretamente. “ Tentei lê-lo,
mas não o compreendi. Apenas a parte que me trouxe até aqui.”
O
vulto branco, que parecia tremular entre diferentes estados de matéria, ora
solido como rocha, ora intocável como uma miragem, caminhava ao redor do
lenhador ainda jogado no chão. Seus olhos acinzentados contemplavam o vazio,
como se estes se perdessem perante o vislumbre de um mundo invisível para quase
toda a existência.
“ O
que queres de mim?”, perguntou ao parar frente as costas do homem.
Após
um silêncio que permitiu que o longínquo murmúrio do bosque fosse por eles
ouvido, o homem ergueu o rosto a contemplar o céu que cobria-lhes com seu manto
bordado em estrelas.
“ Eu
quero viver para sempre!” Foram as palavras que saltaram graciosamente de seus
lábios.
“
Pois que assim seja.” Disse a antiga figura branca enquanto caminhava em
direção ao lago, ajoelhando-se a sua margem.
“
O.. O livro mencionava um preço...” Disse o homem em voz baixa.
“
Não te preocupes quanto a isso, criança. Não faço de tudo por aquilo que
recebo, quanto mais a quem me veio com tão forte e honesto desejo.” Respondeu
solenemente.
Enquanto
caminhava de volta ao ainda caído lenhador, o reflexo vindouro das águas parou
de sorrir em sua superfície, que agora se mostrava completamente negra e opaca.
O ar tornou-se surdo e pesado, decaindo na escuridão a cada passo dado pela
entidade, que permanecia tão clara e luminosa quanto o dia.
“ A
lua escondeu-se sob nuvens... Tão distante, mas ainda assim tão sábia. Não
achas?” Murmurou ao se abaixar diante do homem que tremia sem saber o que o aguardava.
Aproximou os finos dedos cobertos pela espessa lama do lago em direção ao rosto
assustado.
“
Abra-te os olhos!”
Tão
logo o lenhador descolou as pálpebras tremulas, tudo o que outrora conheceu tornou-se
escuridão e vazio.
*****
Grossos
dedos enrijecidos pelas constantes esfoliações e cascas de feridas, arranhavam
a superfície rugosa de algo que um dia aprendera a chamar de árvore. Palavra
está que vagava perdida de significado em sua mente, tal qual todas as outras
que ainda mantinham-se, estranhamente, agarradas à sonhos muito distantes.
Enquanto
arrastava-se sobre a terra seca de um mundo esquecido, tateava cegamente o
caminho a sua frente, movido por um desejo que gemia, retorcia-se e gritava,
envenenando sua alma com o fervor da agonia. A fome não o permitia descansar, envolvendo-o
num ciclo eterno que jamais chegaria ao fim. O alimento comum, por assim dizer,
não mais o saciava, e o desespero irracional em agarrar-se insandecidamente à
própria vida, era única coisa, que em meio a tanta confusão, norteava sua
mente.
O
mundo escuro que o cercava, de súbito mudou de repente. O ar opressor ganhou
espaço, circulando e brincando ao seu redor, trazendo consigo um doce e
sorridente aroma que adentrou suas narinas, preenchendo por completo os pulmões.
Dentre todos os aromas que habituara-se a sentir, aquele domou severamente sua
atenção. Era de fato diferente de tudo aquilo que um dia farejou. Criatura
alguma que já cruzara seu caminho possuía um cheiro tão forte e atrativo quando
aquele.
Levantou
a cabeça buscando, através do faro, encontrar a trilha que o levaria até a
fonte do cheiro. Sua boca já deixava escorrer por entre os dentes o gosto, trajado
pelo cheiro, de sua futura presa. Esgueirou-se lentamente pela vegetação muito
mais leve e espaçada do que antes, como aprendera a fazer de forma tão exemplar
em suas caçadas. Sorrateiramente aproximou-se de uma estrutura sólida, feita do
mesmo material que sustentava o bosque no qual vivia. Ergueu as narinas
tentando encontrar o faro novamente, e seguiu-o, circundando a estrutura.
Tateou
aquilo que parecia uma fissura, uma falha, um caminho que o levaria diretamente
à satisfação. Adentrou velozmente pela abertura, na certeza que sua presa de
forma alguma o aguardava. Tão logo avançou exibindo unhas e dentes em um grito
feroz, algo veio repentinamente ao seu encontro. Urrando para defender o
filhote, o animal pôs-se o mais alto que pôde afim de fazer recuar aquele que
atacava. O choque entre os corpos fez o ar vibrar, e o chão magoar-se ao
recebê-los num abraço doloroso.
Rolando
um sobre o outro, dançavam uma melodia agonizante, compassada por socos,
mordidas e arranhões. O desespero pela vitória, embora motivados por questões
diferentes, igualava-os como sopros dados a favor do vento, permitindo que
apenas um levantaria ao final de tudo.
Quando
o suor da exaustão já banhava sua pele, o predador, num esforço descomunal,
ergueu-se sobre o corpo de sua presa, cravando os dentes entorno do pescoço
quente e macio. Os gritos de euforia e pavor massageavam seus ouvidos,
enchendo-lhes de satisfação e calmaria. Os dedos, tal como garras, penetraram o
abdômen da criatura, que já se entregava aos últimos suspiros de sua vida. O
calor do sangue banhava sua alma, enchendo-a de paz e alivio, e a macies da
carne mastigada em sua boca, saciava a infindável sede de seu corpo como nunca
antes havia conseguido.
Satisfeito
com sua caçada, e ainda coberto pelo fluido de vida que acabara de roubar,
voltou novamente os sentidos ao ar que o cercava, ouvindo um som distante, mas
ainda assim muito perto. Movendo-se como uma serpente, esgueirou-se pelo mundo
negro, esbarrando e deparando-se com objetos que não compreendia, guiado por
soluços abafados que em algum por alí lugar se escondia.
Tateou
e cheirou um amontoado de objetos macios, diferentes de qualquer coisa que
tenha encontrado no mundo do qual viera. O cheiro, agradável e perfumado,
escondia outro muito mais doce em suas entranhas. Cavou e fuçou por entre os
tecidos, lançando-os para todas as direções, como um faminto animal a revirar o
lixo. Não demorou muito para encontrar o que com tanto fervor procurava. Agarrou
com as mãos rubras, uma pequena poção de vida, que assustada, soltou um berro
estridente e ensurdecedor.
Por
um rápido suspiro, dentro da mente daquele que um dia fora um simples lenhador,
e como homem que era, moldado pelo medo, o som, que agora rasgava-lhe
os ouvidos, foi compreendido como um choro, o choro de uma criança.
De forma
lenta e graciosa correu seus dedos sobre a pele lisa que berrava em seus
braços, aproximou-a do rosto, sentido o calor transpassar e beijar-lhe a pele
seca e sem vida da face. Tocou os lábios grossos e ressecados sobre a carne
macia, permitindo que o cheiro adentra-se lentamente por suas narinas, enquanto
perdia-se doce sabor de carne viva.
Todas
as noites a lua abraça carinhosamente um mundo corrompido, envolto pelas trevas
e esquecido pela luz. Dentre os montes e florestas, cavernas e cidades, rios e
oceanos, estão aqueles, para quem a lenda do homem que tornou-se demônio ao
devorar a própria família, viverá para todo o sempre.
- Caio Karoba
- Caio Karoba
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