O interrogatório
Dentre todos os mistérios que vagam a esmo
pelo cosmo, talvez a Terra seja o mais obscuro de todos. Abandonada a própria
sorte próxima a grande figura brilhante, outrora visto como o próprio Deus,
ela abriga criaturas tão pequenas e frágeis, dotadas de quase nenhuma
consciência. Tais criaturas não apenas possuem a esplendida capacidade de
conjurar sonhos, mas de tornar real seus pesadelos.
“Acho que ela desmaiou, senhor.”, disse um
jovem rapaz com voz e cabeça baixa.
“Acorde-a!”, Respondeu-lhe com firmeza
e autoridade.
O Jovem caminhou até um tanque de madeira,
com o auxilio do balde surrado e desgastado pelo constante uso, ele pegou uma
quantidade generosa da água escura e esverdeada pelos fungos que nela
germinavam.
“Ande com isso rapaz, não percamos mais
tempo!”, berrou e o olhou-o com um tom de reprovação.
Com os braços trêmulos o jovem derramou
por completo o conteúdo do balde sobre a cabeça da moça. Os longos cabelos
negros que lhe cobriam o rosto, agora jaziam completamente encharcados e
colados junto à pele suja de sua face.
“Novamente!”, ordenou o homem sem desviar
o olhar da jovem por um só segundo.
Desta vez, como quem acorda do sonho da
morte, a moça ergueu a cabeça desesperada a procura de ar. O brusco movimento
voltou a lhe ferir seus braços calejados e presos, o cheiro do mofo e madeira
apodrecida a Fez recordar de onde estava.
“Vejo que finalmente acordou, senhorita.
Com o que sonhava? Vamos, conte pra nós.”
Por entre os fios de cabelos molhados, ela
o observou com a respiração ofegante e os olhos a pesar em lagrimas.
“Ao que parece meu rapaz ”, disse o homem
enquanto remexia alguns instrumentos no balcão. “ vamos continuar aqui por mais
algum tempo.”
O homem se dirigiu até a pequena lareira
escavada na parede fria de pedra, sobre ela, velhas ferramentas repousavam em
um sono profundo, aguardando o dia em que voltariam a ser reutilizadas. Com os
dedos magros retirou delicadamente uma longa alavanca de ferro do seu local de
descanso, logo em seguida mergulhou uma de suas extremidades sob as brilhantes
brasas banhadas pelas chamas alaranjadas.
Voltou-se na direção do balcão, onde
apanhou um alicate. Diferente dos instrumentos expostos na parede, este se
mostrava muito bem cuidado e conservado. “ Queira pende-la as mãos com mais
firmeza, sim?”, disse ao olhar o jovem rapaz que não parecia nem um pouco
confortável com aquela situação.
Presa à cadeira, a jovem permanecia
incorrupta. Os olhos escuros pesavam-lhe no rosto, projetando toda a sua face
para baixo. Por entre os lábios ressecados esboçou abafados gemidos enquanto as
cordas apertavam ainda mais os braços cobertos de ferimentos e hematomas.
“Por que não evita mais sofrimento e
confessa por fim o que fez? ” Dirigiu-lhe o homem enquanto se aproximava a
pesados passos.
“Olhe pra mim quando falo com você!”,
rugiu olhando-a de cima.
Lentamente ela levantou a cabeça tremula
na direção de seu inquisidor.
“Você nega que nos últimos seis meses
trabalhou na propriedade dos Vincent, e que lá cometeu tamanha barbaridade?”
Perguntou severamente.
Motivado pela ausência de resposta, homem
deu um passo a frente agarrando a unha do opositor esquerdo da prisioneira. “
Você nega ter servido na residência dos Vincent nos últimos 6 meses?” indagou
tão lentamente quanto forçava a ferramenta .
Tremendo de dor, a jovem engolia em seco
os gemidos quase sempre por mal sucedida. Com um ultimo esforço mais forte a
unha fora arrancada do dedo pálido. O sangue quente viajou pelo ar até por fim
derramar-se sobre o vestido, que embora sujo e encardido, trazia indícios que
no passado fora tão belo quanto sua dona um dia foi.
Dotado de mãos firmes e expressão
inabalável, o interrogador já estava por arrancar a quarta unha quando
finalmente a mulher gritou desesperada. “ Sim! Eu trabalhei! Eu trabalhei...” e
sucumbiu aos suspiros pesados de quem realizou um grande esforço.
“Muito bem, muito bem. Vejo que estamos no
mesmo barco agora.” Disse o com um certo prazer em sua voz. “ Agora fale sobre
seu trabalho. O que fazia na residência?” e se virou de volta ao balcão atrás
de si.
“Eu era uma criada, senhor. Apenas isso.”,
respondeu a jovem em um tom quase inaudível.
“Continue!”
“Nada a mais que isso. Eu limpava,
cozinhava, e as vezes cuidava das crianças...”
“Você não esta sendo sincera minha jovem.
Sei que fazia tudo isso, mas sei que também fez algo a mais. Algo proibido
talvez?” e se virou deixando a mostra um pesado martelo balançar entre seus
dedos.
“Eu juro senhor, pelo deus cristo e sua
mãe que jamais roubei nada.” Disse em voz falha já por imaginar o
martírio que a aguardava. “ Eu juro...”
“Eu acredito em suas palavras, mas sabe
que não é por isso que estamos aqui.”
Em um movimento rápido e surdo, o martelo
desceu impiedosamente sobre a mão direita da prisioneira. Sua cabeça sacudiu
violentamente pra todos os lados, movida numa ferocidade capaz de arranca-la
fora do corpo. O grito desesperado e estridente, nem de longe fez jus a tamanha
dor que lhe afligia. Tão logo o pesado objeto ergueu-se, a pálida mão tornou-se
tão escura e inchada quanto a carne podre de um animal morto há dias
“Por que não falamos agora sobre seus
hábitos noturnos? Outras criadas alegam que você as deixava quase todas as
noites e que seu destino permanecia um mistério. Aonde esteve todas estas
noites?” disse enquanto caminhava lentamente ao redor da acusada.
“Jamais sai durante a no-noite. Nunca,
nun.. nunca.” Respondeu por entre os cruéis afagos da dor.
“Mentira!”, retrucou levantando-lhe o
queixo com o martelo. “ Aonde esteve todas aquelas noites?”
“Eu nunc...”, foi capaz de dizer antes de
ser interrompida pelo pesado abraço desferido contra seu rosto.
“Eu pergunte aonde você foi!” vociferou
contra a face ligeiramente deformada pela fratura do osso e comprimida pelo
inchaço que já se formava.
De cabeça baixa, as únicas palavras que
conseguia lembrar chegavam aos lábios umedecidas pelo sangue ainda quente que
agora deslizava ao longo do pescoço e seios.
“Flo-floresta... Eu... ” Falou quase
desfalecida.
“O que fazia na floresta no meio da noite,
creio que conhece o perigo de andar por aí sozinha no escuro, não? ” Perguntou
o homem já um tanto satisfeito com o progresso.
“Ervas, eu procurava por ervas.”
“Para qual finalidade? ”
“Remédios, eu-eu fazia remédio com elas.”
O homem caminhou com um ar intrigante pela
sala, e por fim perguntou:
“Como e para quem?”
“O meu filho senhor, ele nasceu muito
doente... Para que não fosse sacrificado por invalidez eu o escondi na mata e
lá cuido dele.”
“E onde aprendeu a usar o poder das ervas
ao seu bel-prazer?” Perguntou um tanto curioso.
“Um, um livro...” Disse a jovem após
alguns instantes de silêncio.
O homem soltou uma gargalhada, incitando
que outros presentes também o acompanhassem.
“Um livro?”, riu novamente. “O que quer
uma criada com um livro? Vai dizer agora que aprendeu a ler com as plantas e
animais?”
O som das vozes e risadas atravessavam
como eco os ouvidos da jovem, a forte pressão do inchaço no rosto a
impedia de abrir totalmente os olhos. Sua respiração tornava-se cada vez mais
fraca e espaçada mergulhando-a novamente na escuridão de sua mente.
***
“Acorde-a!”
Mais uma vez, completamente suja e
encharcada, ela estava de volta ao interrogatório. Olhou com dificuldade em
volta, tudo parecia como antes, exceto ela mesma. Sobre sua cabeça, um tipo de
capacete composto por hastes de ferro repousava suavemente.
“Rapaz, faça o favor.”, disse o homem ao
estender a mão na direção do utensílio.
Como um cachorro treinado, o jovem se
moveu rapidamente para trás da prisioneira, e tão logo a girar a pequena
alavanca. Lentamente as hastes começaram a se mover pressionando um aro muito
bem encaixado na cabeça da jovem.
Sentindo o metal frio apertar cada vez
mais seus pensamentos, a mulher sacudiu-se em desespero.
“Ahhh, não. Eu já falei tudo, por favor
não!”
“Sabemos que sim, mas ainda nos falta um
pouco mais.” Falou tranquilamente. “ Aperte!”
A jovem rugiu de dor, revirando os olhos e
retorcendo os dedos que ainda se moviam, ela gritava, pedia e jurava para que
aquele sofrimento acabasse.
“Já chega!”
Tão lentamente quanto apertaram, as hastes
agora afrouxavam-se ao redor do crânio. Na testa da jovem era possível ver
claramente a depressão escurecida pelo sangue preso que assinava em nome da tal
brutalidade.
“Os homens que trabalham na fazenda alegam
que muitos animais desapareceram ou morreram de forma misteriosa desde que passou
a trabalhar na residência. Está ciente disso?”
“Sim senhor, todos souberam destes
eventos. O senhor Milton acredita ter sido obra de algum animal.” Respondeu com
a respiração pesada.
“Ele chegou a comentar que tipo de animal
poderia ser?”
“Não, nunca soube dizer.”
“Pois eu digo que não foi nenhum animal.”
Disse o homem postando-se bem diante da jovem.
Ela levantou os olhos bem de encontro aos
deles, durante alguns instantes o absoluto silencio tornou-se ensurdecedor.
“ Foi você!”
Os olhos da judiada mulher se abriram num
repentino espanto mediante a acusação que lhe abatera tão forte o peito.
“Desde que essa desgraçada entre nós se
fez presente,” Levantou a voz para que todos no recinto o ouvissem claramente.
“ Não só os Vincent, mas também outros proprietários notaram eventos estranhos.
Desde a morte de animais até uma seca repentina de plantações. Poços de água
podre e uma peste maldita assolando quem quer que ande sobre a terra!”
Murmúrios em concordância tomaram o ar a
sua volta, satisfeito com a aprovação ele continuou.
“Todas as calamidades tiveram inicio
quando esta desconhecida chegou à cidade, pelo que soube ninguém a conhecia,
nem mesmo já se ouviu falar de sua família. Além disso ela alegou perante
vossos olhos que possui um filho mesmo não sendo casada. Com todo respeitos aos
senhores, mas esta não passa de uma fornicadora condenada ao inferno, e por
onde quer que passe arrastará consigo a desgraça!”
Ele caminhou ligeiramente de volta a
lareira de onde retirou a longa alavanca, esta agora gozava de uma extremidade
tão brilhante e quente quanto o próprio fogo do inferno. Lentamente aproximou-a
do olho direito da mulher, que a essa altura já havia chorado rios inteiros de
água salgada.
“Diga quem é você e de onde veio. Diga!”,
gritou ao aproximar ainda mais o ferro em brasa.
O medo não a permitiu falar uma só palavra
até que a luz beijasse seu olho. O grito estridente fez tremer as paredes e
ensurdeceu os ouvidos de todas as almas que em seu plano carnal se faziam
presentes.
O súbito barulho entoado pelas inúmeras
vozes berrando e gritando ao mesmo tempo, foi cessado imediatamente com uma
forte pancada na porta. Por ela entrou um homem de baixa estatura e rosto
assustado, sua roupa suja e surrada indicava que havia andando por terreno difícil
e coberto por vegetação. Há passos lagos e um pouco ofegante aproximou-se da
autoridade vigente.
“Vasculhamos a floresta, senhor.” Disse ao
retirar o chapéu em respeito e pousa-lo sobre o braço.
“E o que encontraram?”, Perguntou o homem
demonstrando muito interesse.
“Uma criança disforme. As mulheres mal
aguentam olhar em sua direção, muito menos diretamente para sua face. Gritam e
amaldiçoam-na como o filho do demônio.”
A jovem continuava a se mover inquieta
pela dor que a assombrava, forçando os braços amarrados na esperança de
conseguir solta-los.
“Acharam mais alguma coisa?”
“Um dos volumes proibidos do Alh’ha
Debuh.”
O homem fechou os olhos com muito pesar,
suas sobrancelhas brancas pareciam querer se tocar enquanto pesadas gotas de
suor escorriam pela sua rala barba. Decidido caminhou de volta até a moça, que
relutava para se livrar das amarras. Curvou-se lentamente até ficar cara à cara
com aquele rosto triste, e agora desfigurado.
“Eu sei quem você é...”, disse olhando na
escuridão de seu único olho ainda aberto . “ Bruxa!”
Vozes de espanto e acusação ecoaram por
entre as frias paredes de pedra. Dois homens altos trajando roupas de guarda
aproximaram-se pesadamente da mulher, que agora sacudia-se violentamente em
desespero, e imóveis aguardaram ordens.
“Queimem-na!”, Falou por fim num tom seco.
Os soltados desamarraram a condenada e só
com muita brutalidade a mantiveram sob controle.
“Ahhhh, Não! Por tudo que há de mais
sagrado, senhor! Eu não sou bruxa, eu não sou!”, gritava e rugia
desesperadamente a ponto de romper os limites de sua voz.
Enquanto era arrastada pra fora alguns dos
presentes na sala se benziam, outros lhe amaldiçoavam com fortes agressões na
cabeça e estômago, ou apenas se limitavam a cuspir-lhe a face.
“Esta já é a terceira condenada esta
semana, padre.” Disse o jovem rapaz ao se aproximar do cansado inquisidor. “
Acha que encontraremos mais alguma?”
Ele calmamente retirou um lenço do bolso e
enxugou o suor do rosto, olhou em direção ao jovem lamentando que ele tivera
sido obrigado a presenciar o tamanho horror daquela noite.
“Eu começo a pensar, meu bom rapaz, que
bruxas não existem.”
-
Caio Karoba
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