sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O lobo


   As chamas tremeluziam em fagulhas a cada movimento provocado na lenha. Com um pequeno graveto o homem revirava e remexia os pedaços de madeira depositados na singela lareira. O calor do fogo abraçava carinhosamente seu rosto derretendo os pequenos flocos de neve presos na sua espessa barba branca.
Aquele inverno tivera sido rigoroso, talvez o pior que se tenha tido noticia nos últimos 50 anos. Cidades jaziam paradas e desoladas, atoladas sob palmos e mais palmos de neve. Algumas já se encontravam completamente vazias, seus únicos habitantes eram agora aqueles que haviam sido reclamados pela peste ou pela simples falta de alimento. Entre aqueles que permaneceram em  suas casas, restava apenas o medo e a esperança  de que um dia os tempos voltariam a melhorar, e o sol voltaria a sorrir para aqueles condenados. 
Da cabana, o velho podia ver a estrada, esta que outrora fora transitada por inúmeros carroças de mercadores trazendo de longe produtos e atrações, agora se encontrava triste, vazia e coberta de neve. O vento soprava por entre as arvores frias assoviando em cada fresta ou janela que encontrasse em seu caminho. A floresta nunca pareceu tão escura e silenciosa como tivera sido nos últimos dias, e ao que parecia qualquer que fosse o animal que vivia por ali já havia perecido ou debandado a muito tempo. 
O velho olhou pensativamente pela pequena janela de madeira, já muito marcada e desgastada pelo tempo. O céu estava límpido e agradável aquela noite, se podia ver claramente as estrelas destacadas sobre o breu infinito do firmamento, tão únicas e serenas dormiam sem saber dos horrores que habitavam sobre a terra. Os olhos do velho homem percorreram toda a vastidão do céu, mas decidiram parar e vislumbrar algo muito mais belo e atraente. A lua, a dama da noite, se mostrava magnifica em todo o seu esplendor. 
    " Tão linda e brilhante...", disse ao vê-la. " É uma pena que será manchada com sangue." 
Ele caminhou lentamente até um velho baú depositado em cima de uma bancada junto a vários outros objetos. Pousou a mão sobre sua superfície e suavemente passou os dedos pelo entalhe da pequena caixa de madeira sentindo cada curva e relevo, como se cada marca e arranhão nela presente tivesse sua própria história, estas  perdidas e misturadas a um passado muito distante.
Com as duas mãos abriu-o lenta e carinhosamente, o cheiro do ar selado em seu interior logo subiu as suas narinas e o fraco brilho do conteúdo refletiu em seus olhos. Esticou os finos dedos rígidos com cuidado, até que pôde encostar na fria superfície dos objetos guardados. Três balas de prata repousavam dentro do baú, alí frias e solitárias refletiam o laranja proveniente do fogo, e se aqueciam após tanto tempo. 
O velho pegou-as e se virou novamente em direção a lareira, mas dessa vez não era o fogo que o interessava. Ao lado da simples lareira e pendurada na parede descansava uma antiga arma de caça. O homem se aproximou dela e com cuidado a retirou dos suportes que a seguravam, tal qual quem segura pela primeira vez um bebê recém nascido. Caminhou mais alguns passos até a mesa, onde depositou sua arma e munição. Logo em seguida começou a limpa-las. 
Conforme as horas passavam o fogo na lareira ficava cada vez mais fraco, a luz da lua que insidia pela janela andava pelo piso de madeira e logo alcançaria as gastas botas de couro que o homem calçava. Do inabalável silêncio da noite emergiu um som tão alto e claro que até os mortos poderiam ouvi-lo. Um uivo rasgou o ar ecoando nos ouvidos do velho. 
    " Auuuu! "     
    " É chegada a hora.", disse o velho com o pesar em sua voz.  
Levantou-se e posicionou a cadeira uns dois metros a frente da porta. Sentou-se novamente e colocou uma das balas no cano da arma engatilhando-a para o disparo. 
    "Auuuuuuuuuu!" 
Fechou os olhos e começou a recitar o que poderia ser a sua ultima oração. 
    "Auuuuuuuuuuuuuuuuuu!"
 E o silêncio tomou conta do ar, nenhum som, nenhum ruido. Tudo parecia tão quieto como estava pouco tempo atrás.
     " Vamos lá! Apareça... ", sussurrou o velho por entre os dentes cerrados. 
A calmaria momentânea foi sanada por uma forte batida na porta, as dobradiças sacudiram e poeira se soltou por entre as frestas da madeira. Logo em seguida veio a segunda batida, dessa vez mais forte que a primeira, a tranca da porta e uma das dobradiças já estavam frágeis e entortadas. O velho sabia que logo elas iriam ceder. 
     " Venha logo de uma vez seu desgraçado! " 
Mais uma forte pancada se seguiu e a porta então cedeu, grandes olhos amarelos olhavam fixamente para o velho sentado na cadeira.
      " Olá Louis! "
Com um forte rosnado a fera saltou sobre a porta caída em direção ao homem, Dentes cobertos de baba se moveram tão rápido que o velho, instintivamente, só teve tempo para puxar o gatilho. O tiro acertou o abdômen da criatura, que caiu agonizando bem ao seu lado.
Num salto o velho levantou-se e tentou recarregar a arma, porém seus dedos trêmulos e frágeis deixaram a bala cair, assim a fera atacou novamente saltando sobre seu corpo. Dessa vez ambos foram ao chão, rolando e se digladiando com toda a força que ainda tinham. O cano da arma era a unica coisa que separava os longos dentes do animal da enrugada face do velho, e consequentemente de uma morte certa.
     " É assim que vai acabar? Hãm ?", gritou para o seu oponente, mas nos olhos da fera não se refletia nenhuma gota de razão. Tentou chutar e atirar o animal pra longe de si, mas mesmo com todo o esforço não obteve sucesso. Soltou a arma com uma das mãos, segurando-a apenas com a outra. A ação desesperada fez o peso da fera cair ainda mais sobre seu corpo, deixando-o sem espaço para se mover ou lutar.            
Com a mão livre ele tateou o corpo no animal em busca de alguma forma de agarra-lo, até que encontrou o ferimento provocado pelo disparo, penetrou seus dedos na carne quente e viscosa retorcendo-os e agarrando o máximo que podia. O sangue quente escorreu por sua mão e a criatura rosnou de dor, saltando de cima do velho e cambaleando desorientada em direção ao fogo.
O velho aproveitou o momento para recarregar a arma e disparou quando o animal tentou avançar novamente. O disparo, muito mais certeiro dessa vez, acertou o peito da criatura que caiu sem forças para se levantar. Deitada no piso de madeira banhando pelo próprio sangue, a criatura apenas observava um velho caçador apanhar sua ultima bala do chão afim de abater sua presa.
     " Então é assim que acaba, não é? ", disse trêmulo enquanto engatilhava a arma. " Eu não achei que esse dia chegaria, que eu iria... Todos esse anos... foi você Louis, não eu. Essa bala é pra você!"
Os profundos olhos amarelos apenas o observavam, nenhum som, nenhum grunhido, a fera apenas o observava enquanto sua respiração se tornava cada vez mais fraca e espaçada.
O velho aproximou-se à pesados passos provocados pela sola de suas botas parando em frente ao grande lobo de pelos negros. Lagrimas escorriam pelo sua face enrugada pelo tempo e ressecada pelo frio, apenas pra se perderem em meio aos grossos fios de sua barba branca. Ergueu a arma e repousou o cano na testa do fraco animal. O lobo então puxou todo o ar que sua força permitia e lentamente começou a fechar os olhos.
    " Adeus meu velho amigo..."
O som do disparo ecoou pela noite, e o resto foi apenas silêncio.

                                                                                                 - Caio Karoba
       

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